Quando saí do escritório do advogado, o sol do meio-dia queimava a minha pele. O papel do divórcio na minha mão parecia mais leve do que uma pena, mas o seu peso esmagava o meu coração.
No meu telemóvel, as notícias sobre o resgate do meu marido, bombeiro herói, ainda estavam em todo o lado. "Bombeiro Corajoso, Pedro Sousa, Salva Criança de Prédio em Chamas, Sofre Queimaduras Graves."
As fotos mostravam-no a ser levado para uma ambulância, o seu rosto coberto de fuligem, mas os seus olhos focados e determinados. Um herói para a cidade, mas um estranho para mim.
Forcei-me a guardar o telemóvel e a entrar no carro. O ar condicionado soprava ar frio, mas não conseguia aliviar o calor que me subia pelo peito.
Pensei que o divórcio seria o fim do sofrimento, mas era apenas o começo de um novo tipo de dor.
Liguei o carro e dirigi sem rumo, até que o som de uma chamada interrompeu o silêncio. Era a minha sogra, Helena. Atendi, esperando a habitual onda de acusações.
"Ana, o que é isto? Divórcio? O Pedro está no hospital, a lutar pela vida, e tu decides abandoná-lo agora?"
A sua voz era aguda, cheia de raiva.
"Ele salvou uma criança, Ana! Uma criança! E tu, o que fizeste? Assinaste papéis enquanto o teu marido quase morria. Onde está a tua humanidade?"
"Helena, o Pedro não é o único que está a sofrer," respondi, a minha voz a tremer ligeiramente. "Eu perdi o nosso filho. O nosso filho."
A linha ficou em silêncio por um momento, mas não era um silêncio de compaixão.
"Isso foi um acidente," ela disse finalmente, a sua voz fria como gelo. "Acidentes acontecem. Mas o que o Pedro fez foi um ato de heroísmo. Ele escolheu salvar uma vida. Tu devias ter orgulho nele, não abandoná-lo como uma covarde."
Orgulho? Eu senti um nó na garganta.
"Ele escolheu salvar a filha da Eva, Helena. Ele escolheu-os a eles em vez de a nós. O nosso filho morreu porque o pai dele estava a salvar a família de outra mulher."
"Não sejas ridícula," ela retorquiu. "A Eva é uma amiga. Uma viúva que precisa de ajuda. O Pedro tem um bom coração. É por isso que ele é um herói e tu... bem, tu estás a mostrar a tua verdadeira face agora."
Ela desligou.
Eu atirei o telemóvel para o banco do passageiro. As lágrimas que eu tinha segurado começaram a cair.
Ela estava certa sobre uma coisa. O Pedro tinha um bom coração. Um coração tão grande que havia espaço para todos, menos para mim e para o nosso filho por nascer.
A Eva. A sua amiga de infância. A mulher que ele nunca esqueceu.
O incêndio não foi um acidente de trabalho qualquer. Aconteceu no prédio onde a Eva morava. Ele estava de folga. Ele correu para lá porque ouviu que ela estava em perigo.
Ele não pensou em mim, grávida de oito meses, à espera dele em casa. Ele não pensou no nosso filho.
Ele só pensou nela.
A dor no meu peito era insuportável. A dor da perda, a dor da traição. O nosso bebé, o bebé que esperámos durante anos, tinha-se ido. A única coisa que nos ligava tinha desaparecido.
O divórcio era a única saída. Ficar seria continuar a sufocar nesta mentira.
O meu telemóvel tocou novamente. Desta vez, era a minha mãe. A sua voz era suave, cheia de preocupação.
"Filha, onde estás? Vi as notícias. Estás bem?"
"Mãe, eu divorciei-me do Pedro," disse eu, a voz embargada.
Houve uma pausa. Eu sabia que a estava a magoar, mas eu precisava de dizer a verdade.
"Fizeste o que tinhas de fazer," disse ela finalmente. "Vem para casa, Ana. Vem para casa."
As suas palavras foram o único consolo num dia de ruínas. Desliguei a chamada e virei o carro. Eu ia para casa. Para o único lugar onde ainda me sentia segura.