Cicatrizes de Fogo: A Verdade da Mulher Abandonada
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Capítulo 2

A casa da minha mãe cheirava a canela e a memórias antigas. Era um cheiro que eu associava a segurança, a tardes passadas a fazer bolos e a ouvir as suas histórias.

Ela abraçou-me à porta, um abraço apertado e longo que dizia tudo o que as palavras não conseguiam. Não fez perguntas. Apenas me guiou até ao sofá e sentou-se ao meu lado, segurando a minha mão.

"Ele ligou," disse ela baixinho, depois de um longo silêncio. "O pai dele. O Artur."

Eu encolhi-me. Artur Sousa era um homem duro, um bombeiro reformado que via o mundo a preto e branco. Para ele, o Pedro era um deus, e eu era apenas a mulher que tinha a sorte de estar ao seu lado.

"O que é que ele queria?" perguntei, já a adivinhar a resposta.

"O mesmo de sempre," disse a minha mãe, com um suspiro. "Disse que tu eras ingrata. Que estavas a manchar o nome da família. Que uma mulher de verdade apoia o seu marido, aconteça o que acontecer."

Ela apertou a minha mão com mais força.

"Eu disse-lhe para não se atrever a ligar para aqui outra vez a insultar a minha filha. Disse-lhe que o filho dele fez uma escolha, e agora tem de viver com ela."

Olhei para a minha mãe, para as rugas de preocupação à volta dos seus olhos, e senti uma onda de gratidão. Ela sempre foi a minha rocha.

"Obrigada, mãe."

"Não tens de me agradecer por te defender, Ana. É o meu trabalho."

Ficámos em silêncio outra vez, a ver a poeira a dançar nos raios de sol que entravam pela janela. O telefone da casa tocou, o som estridente a quebrar a paz. A minha mãe atendeu.

Pela sua expressão, percebi imediatamente quem era. O seu rosto endureceu, a sua voz tornou-se fria.

"Helena, já te disse o que penso. Não, ela não quer falar contigo."

Ela ouviu por um momento, o seu maxilar a cerrar-se.

"Isso não é da tua conta. A minha filha tomou a sua decisão. Respeitem-na."

Ela bateu com o telefone no gancho com força.

"Ela queria o teu novo número," disse a minha mãe, virando-se para mim. "Disse que o Pedro acordou e está a chamar por ti. Disse que tu és cruel por o privares da tua presença neste momento."

Uma risada amarga escapou dos meus lábios.

"Cruel? Eu sou a cruel?"

Ele estava a chamar por mim. Agora. Depois de tudo. Depois de me ter deixado sozinha no momento em que mais precisei dele. Depois de o nosso filho ter morrido.

"Ele não me privou da presença dele quando eu estava a perder o nosso bebé?" A minha voz era um sussurro rouco. "Ele não estava lá, mãe. Eu estava sozinha."

As memórias daquele dia voltaram com força. A dor, o pânico, as chamadas não atendidas para o Pedro. Eu a ligar para a ambulância sozinha, a chegar ao hospital sozinha, a receber a notícia devastadora sozinha.

Ele estava ocupado a ser um herói para outra pessoa.

"Eu sei, querida. Eu sei," disse a minha mãe, puxando-me para um abraço. "Tu não tens de fazer nada que não queiras. Nada."

Naquela noite, não consegui dormir. Revirava-me na cama, a imagem do Pedro na maca do hospital a assombrar-me. O herói da cidade. O meu carrasco pessoal.

Peguei no meu telemóvel e, contra o meu bom senso, abri as redes sociais. O feed estava inundado de publicações sobre ele.

#HeróiPedroSousa. Fotografias, mensagens de apoio, elogios de estranhos.

E depois, vi uma publicação da Eva. Uma foto dela e da filha, sorridentes, com a legenda: "O nosso anjo da guarda, Pedro Sousa. Devemos-te as nossas vidas. A recuperar bem e em breve estará de volta. Força, campeão."

O nosso anjo da guarda.

Senti o meu estômago revirar. A intimidade daquelas palavras, a posse implícita. "O nosso".

Fechei os olhos, mas a imagem dela não desaparecia. Eva, com o seu ar de donzela em apuros, sempre a precisar de ser salva. E o Pedro, sempre pronto a correr para o seu lado.

Eu era apenas um obstáculo na sua história de amor épica. Um dano colateral.

A minha decisão estava tomada. O divórcio não era apenas uma opção, era uma necessidade. Era a minha única forma de sobreviver.

            
            

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