Eu encolhi-me. Artur Sousa era um homem duro, um bombeiro reformado que via o mundo a preto e branco. Para ele, o Pedro era um deus, e eu era apenas a mulher que tinha a sorte de estar ao seu lado.
"O que é que ele queria?" perguntei, já a adivinhar a resposta.
"O mesmo de sempre," disse a minha mãe, com um suspiro. "Disse que tu eras ingrata. Que estavas a manchar o nome da família. Que uma mulher de verdade apoia o seu marido, aconteça o que acontecer."
Ela apertou a minha mão com mais força.
"Eu disse-lhe para não se atrever a ligar para aqui outra vez a insultar a minha filha. Disse-lhe que o filho dele fez uma escolha, e agora tem de viver com ela."
Olhei para a minha mãe, para as rugas de preocupação à volta dos seus olhos, e senti uma onda de gratidão. Ela sempre foi a minha rocha.
"Obrigada, mãe."
"Não tens de me agradecer por te defender, Ana. É o meu trabalho."
Ficámos em silêncio outra vez, a ver a poeira a dançar nos raios de sol que entravam pela janela. O telefone da casa tocou, o som estridente a quebrar a paz. A minha mãe atendeu.
Pela sua expressão, percebi imediatamente quem era. O seu rosto endureceu, a sua voz tornou-se fria.
"Helena, já te disse o que penso. Não, ela não quer falar contigo."
Ela ouviu por um momento, o seu maxilar a cerrar-se.
"Isso não é da tua conta. A minha filha tomou a sua decisão. Respeitem-na."
Ela bateu com o telefone no gancho com força.
"Ela queria o teu novo número," disse a minha mãe, virando-se para mim. "Disse que o Pedro acordou e está a chamar por ti. Disse que tu és cruel por o privares da tua presença neste momento."
Uma risada amarga escapou dos meus lábios.
"Cruel? Eu sou a cruel?"
Ele estava a chamar por mim. Agora. Depois de tudo. Depois de me ter deixado sozinha no momento em que mais precisei dele. Depois de o nosso filho ter morrido.
"Ele não me privou da presença dele quando eu estava a perder o nosso bebé?" A minha voz era um sussurro rouco. "Ele não estava lá, mãe. Eu estava sozinha."
As memórias daquele dia voltaram com força. A dor, o pânico, as chamadas não atendidas para o Pedro. Eu a ligar para a ambulância sozinha, a chegar ao hospital sozinha, a receber a notícia devastadora sozinha.
Ele estava ocupado a ser um herói para outra pessoa.
"Eu sei, querida. Eu sei," disse a minha mãe, puxando-me para um abraço. "Tu não tens de fazer nada que não queiras. Nada."
Naquela noite, não consegui dormir. Revirava-me na cama, a imagem do Pedro na maca do hospital a assombrar-me. O herói da cidade. O meu carrasco pessoal.
Peguei no meu telemóvel e, contra o meu bom senso, abri as redes sociais. O feed estava inundado de publicações sobre ele.
#HeróiPedroSousa. Fotografias, mensagens de apoio, elogios de estranhos.
E depois, vi uma publicação da Eva. Uma foto dela e da filha, sorridentes, com a legenda: "O nosso anjo da guarda, Pedro Sousa. Devemos-te as nossas vidas. A recuperar bem e em breve estará de volta. Força, campeão."
O nosso anjo da guarda.
Senti o meu estômago revirar. A intimidade daquelas palavras, a posse implícita. "O nosso".
Fechei os olhos, mas a imagem dela não desaparecia. Eva, com o seu ar de donzela em apuros, sempre a precisar de ser salva. E o Pedro, sempre pronto a correr para o seu lado.
Eu era apenas um obstáculo na sua história de amor épica. Um dano colateral.
A minha decisão estava tomada. O divórcio não era apenas uma opção, era uma necessidade. Era a minha única forma de sobreviver.