"Ana," disse ele, o seu tom a suavizar-se pela primeira vez. "Tu tens direitos. Vocês construíram uma vida juntos. A casa, as poupanças..."
"A casa foi comprada com a herança da minha avó," interrompi. "As poupanças... ele pode ficar com elas. Eu só quero o meu nome fora de tudo o que nos liga."
Ele suspirou, mas assentiu. "Vou tratar disso. Mas prepara-te. Eles não vão facilitar."
Ele tinha razão. As chamadas não paravam. Números desconhecidos, mensagens de amigos em comum que de repente se tornaram porta-vozes da família Sousa.
"Ana, o Pedro está a perguntar por ti. Ele está deprimido."
"Como podes ser tão fria? Ele quase morreu!"
"Pensa no que estás a fazer. Vais arrepender-te disto."
Eu bloqueava os números um a um, construindo uma muralha digital à minha volta. Mas as palavras deles infiltravam-se, como veneno.
Uma tarde, estava a ajudar a minha mãe no jardim quando um carro parou em frente à casa. Artur Sousa saiu do carro. O seu rosto era uma máscara de fúria contida.
A minha mãe pôs-se imediatamente à minha frente, como uma leoa a proteger a sua cria.
"O que é que queres aqui, Artur?" perguntou ela, a sua voz firme.
"Vim falar com a Ana," disse ele, os seus olhos fixos em mim por cima do ombro da minha mãe. "Não contigo, Clara."
"Tudo o que tens a dizer à minha filha, podes dizer-me a mim," retorquiu a minha mãe.
Ele ignorou-a e deu um passo em frente. "Ana, isto tem de parar. O meu filho está a sofrer por tua causa. A tua teimosia está a matá-lo."
"O teu filho fez uma escolha," disse eu, a minha própria voz a surpreender-me pela sua força. "Ele escolheu a Eva em vez de mim. Em vez do nosso filho."
O rosto de Artur ficou vermelho. "Não fales do que não sabes! Ele é um bombeiro! O trabalho dele é salvar vidas! Todas as vidas!"
"Ele não estava de serviço, Artur! Ele foi para lá por ela! E por causa disso, o meu filho está morto!"
As palavras saíram como um grito, rasgando o ar tranquilo da tarde. O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de uma dor que não podia ser desfeita.
Artur pareceu abalado por um momento, a sua raiva a vacilar. Mas rapidamente a recuperou.
"Isso foi um acidente trágico," disse ele, com a voz mais baixa, mas ainda dura. "Mas não podes culpar o Pedro por isso. Ele é um bom homem."
"Eu sei que ele é um bom homem," respondi, as lágrimas a picarem-me os olhos. "Ele é um herói. Mas não é o meu herói. Não mais."
Virei-lhe as costas e entrei em casa, com a minha mãe logo atrás de mim. Ouvi o carro de Artur a arrancar e a afastar-se a alta velocidade.
Fechei a porta e encostei-me a ela, a tremer.
"Fizeste bem, filha," disse a minha mãe, a sua mão no meu ombro. "Tu disseste a tua verdade."
Naquela noite, recebi um email. O remetente era desconhecido. O assunto era apenas "Para a Ana".
Hesitei, mas a curiosidade venceu. Abri-o.
Era um vídeo.
Cliquei em play. A imagem tremida de um telemóvel mostrava um corredor de hospital. A câmara aproximou-se de uma porta de quarto. Lá dentro, o Pedro estava sentado na cama.
E ao lado dele, a segurar-lhe a mão, estava a Eva.
Ela estava a chorar. Ele estava a confortá-la, a acariciar-lhe o cabelo.
"Calma, eu estou aqui," ouvi-o dizer. "Eu estou bem. Nós estamos bem."
Nós.
Ele disse "nós".
O vídeo terminou. Fiquei a olhar para o ecrã preto, o som das palavras dele a ecoar na minha cabeça.
Nós estamos bem.
Quem quer que me tenha enviado aquilo, queria magoar-me. E conseguiu.
Mas também me deu algo mais. Deu-me a certeza final de que eu estava a fazer a coisa certa. Não havia caminho de volta. A ponte entre nós tinha sido queimada, e as cinzas estavam a ser sopradas pelo vento.