Alma de Açúcar, Coração de Gelo
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Capítulo 1

A poção queimava minha garganta, um fogo líquido que prometia o fim da dor e, com ela, o fim de tudo. Na minha mão, o pequeno frasco de vidro estava vazio, um testemunho silencioso da minha decisão final. Três dias. Eu tinha três dias antes que meus órgãos começassem a falhar, um por um. Três dias para encerrar uma vida de dedicação e receber em troca apenas traição.

O médico tinha sido claro, sua voz grave ecoando no consultório silencioso, "Ana, esta doença é rara e agressiva, a única cura conhecida é a Flor da Lua, mas ela é extremamente rara e cara."

Meu marido, o Duque Pedro, estava ao meu lado naquele dia, sua mão apertando a minha, seus olhos cheios de uma preocupação que eu, tola, acreditei ser para mim. Ele prometeu que faria qualquer coisa, que moveria céus e terras para me salvar.

E ele moveu. Ele encontrou a flor, pagou um preço exorbitante que esvaziou uma parte considerável de nossa fortuna, mas a flor não veio para mim. Veio para Clara, minha irmã de criação, que se queixava de um resfriado persistente e uma tosse leve.

"Clara é tão frágil, Ana", Pedro me disse, evitando meu olhar, "Ela precisa mais do que você. Você é forte, vai superar isso."

Forte. A palavra soou como um insulto. Eu, que construí uma rede de confeitarias do zero, que administrei a casa do duque, que lhe dei um filho, era forte o suficiente para ser deixada para morrer.

Com o veneno agora correndo em minhas veias, senti uma calma estranha tomar conta de mim. A dor aguda que me atormentava há semanas começou a diminuir, substituída por uma clareza fria e cortante. Se eles queriam que eu fosse compreensiva, eu seria. Eu lhes daria tudo o que sempre quiseram.

Minha primeira parada foi a casa dos meus pais. Abri a porta sem bater, o cheiro familiar de bolo de fubá no ar. Minha mãe estava na cozinha, rindo de algo que Clara dizia. Meu pai lia o jornal na poltrona da sala. Nenhum deles pareceu notar a minha palidez ou a forma como meus passos eram lentos e calculados.

"Ana, finalmente apareceu!", disse minha mãe, limpando as mãos no avental. "Estávamos justamente falando de você. Clara estava me contando como você tem sido difícil ultimamente."

Eu olhei para Clara. Ela estava sentada à mesa da cozinha, uma xícara de chá nas mãos, um sorriso satisfeito nos lábios. Ela não parecia nem um pouco doente. Na verdade, ela parecia radiante, cheia de vida. A minha vida.

"Você não devia pressionar tanto o Pedro", meu pai falou, baixando o jornal. "Ele já faz tanto por você. E a Clara precisa de cuidados, a saúde dela sempre foi delicada."

Eu não respondi. Apenas caminhei até eles, o som dos meus sapatos ecoando no silêncio que se instalou. Clara me observava com um brilho vitorioso nos olhos, esperando uma explosão, uma cena de ciúmes, uma briga. Ela se deleitava com o meu sofrimento.

Mas eu não lhe daria essa satisfação.

"Eu vim para dizer que vocês têm razão", minha voz saiu firme, surpreendendo a mim mesma. "Eu tenho sido egoísta."

Os três me olharam, chocados. A confusão em seus rostos era quase cômica.

"Eu pensei muito", continuei, meu olhar passando de um para o outro. "E decidi que a rede de confeitarias, 'Doce Ana', será sua, Clara. Você sempre disse que poderia administrá-la melhor do que eu."

Clara engasgou com o chá. Minha mãe levou a mão à boca.

"O quê? Ana, você está falando sério?", perguntou meu pai, levantando-se.

"Totalmente sério", respondi. "Eu já preparei os documentos. Só preciso da assinatura de vocês como testemunhas. A partir de amanhã, tudo é dela."

Entreguei a pasta de couro para Clara. Suas mãos tremeram um pouco ao pegá-la. Ela abriu e seus olhos percorreram os papéis, a incredulidade dando lugar a uma ganância mal disfarçada. Tudo o que eu construí com farinha, açúcar e noites sem dormir, agora estava em suas mãos.

"Minha filha, que bom que você finalmente entendeu", disse minha mãe, um sorriso aliviado se espalhando por seu rosto. "Clara sempre foi mais... sensata para os negócios. Você é muito sonhadora."

"Se você tivesse sido tão compreensiva antes, não teria sofrido tanto", acrescentou meu pai, dando um tapinha no meu ombro. Aquele gesto, que deveria ser de conforto, pareceu um peso de chumbo. Eles não viam o que estava acontecendo. Ou talvez não quisessem ver. Eles celebravam minha rendição, chamando-a de maturidade.

Deixei-os para trás, comemorando a nova "dona" das confeitarias, e voltei para casa, para a mansão do duque que um dia eu chamei de lar. Encontrei Pedro no escritório, revisando alguns papéis com uma concentração que eu raramente via. Ele era um homem de aparências, preocupado com festas e títulos, não com o trabalho duro da administração. Mas ali estava ele, analisando planilhas, os ombros tensos.

"O que está fazendo?", perguntei da porta.

Ele se assustou, levantando a cabeça rapidamente. "Ana. Nada, apenas... revisando algumas coisas."

Aproximei-me e vi os livros de contabilidade das minhas confeitarias abertos sobre a mesa. Ele estava conferindo os lucros, os balanços. Ele sempre disse que não entendia de negócios, que isso era coisa minha. Mas ele entendia. Ele entendia muito bem o valor do que eu havia construído, e agora, o valor do que eu estava entregando a Clara. Ele nunca havia demonstrado esse interesse para me ajudar, apenas para garantir que seu novo "investimento" em Clara estivesse seguro.

Uma onda de náusea me atingiu, mas não era da poção. Era do desgosto.

"Não se preocupe", falei, a voz vazia. "Eu já transferi tudo para a Clara. Agora é problema dela."

Pedro me olhou, uma mistura de alívio e algo mais, algo que eu não consegui decifrar. Ele parecia... satisfeito.

"Isso é bom, Ana. Mostra que você está pensando com clareza", ele disse, levantando-se e vindo em minha direção. "E já que estamos nesse clima de resolver as coisas..."

Ele parou na minha frente, seu rosto sério, quase solene.

"Eu acho que a Clara deveria vir morar conosco. Permanentemente. Para podermos cuidar melhor dela."

O ar saiu dos meus pulmões. Ele não estava apenas me roubando a cura, meus negócios, o afeto dos meus pais. Ele queria trazê-la para dentro da minha casa, para a minha cama, enquanto eu ainda respirava.

O mundo girou por um instante. A calma que a poção me deu foi a única coisa que me manteve de pé.

            
            

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