Clara, do outro lado da linha, riu. "Sim! Não é maravilhoso? Acho que ela finalmente percebeu que eu sou mais capaz de administrar essas coisas. Ela disse que eu merecia."
Houve um silêncio na linha. A mãe e o pai de Ana se entreolharam. A ação era tão fora do caráter de Ana, tão contrária a tudo que eles conheciam dela, que era mais fácil acreditar na explicação de Clara do que confrontar a verdade perturbadora que se escondia por trás daquele ato.
"Bem...", o pai de Ana finalmente disse, sua voz se enchendo de uma satisfação presunçosa. "Parece que a nossa Ana finalmente cresceu. Ela entendeu que o ressentimento não a levaria a lugar nenhum. Fico feliz que ela tenha aceitado a situação e esteja disposta a apoiar você, Clara. Ela está se tornando uma mulher muito mais sensata."
A mãe concordou, aliviada. "Sim, graças a Deus. Eu estava tão preocupada com toda aquela amargura. É bom vê-la sendo compreensiva. Você sempre soube como lidar com ela, Clara."
Na mansão, a vida continuava em um ritmo febril de mudança. Caixas de Clara eram desempacotadas, móveis eram rearranjados. Ana observava tudo de um canto, uma espectadora fantasma em sua própria casa. A poção mantinha a dor física sob controle, mas uma fraqueza profunda começava a se instalar em seus ossos.
Naquela tarde, enquanto estava sentada na varanda, uma tosse violenta a sacudiu. Ela levou a mão à boca e, quando a afastou, viu a mancha vermelha e brilhante de sangue na palma. Seus pulmões estavam começando a falhar. O tempo estava se esgotando.
Sua mãe, que tinha vindo visitar e supervisionar a "nova harmonia familiar", viu o sangue.
"Ana, o que é isso? Você está tossindo sangue!", ela exclamou, mas seu tom era mais de irritação do que de preocupação. "Você precisa se cuidar melhor. Não pode ficar doente agora, justo quando as coisas estão se ajeitando. Beba um chá de gengibre."
Ela se virou e foi para a cozinha, resmungando sobre como Ana sempre encontrava um jeito de chamar a atenção. Ela não trouxe o chá.
Ana limpou a mão na lateral do vestido, o tecido branco manchado de vermelho. Ela olhou para o céu azul, o sol quente em seu rosto, e uma pergunta se formou em sua mente, fria e clara.
Ela se levantou e foi até a sala de estar, onde sua mãe, seu pai, Pedro e Clara estavam rindo, planejando uma grande festa para celebrar a "nova fase" da família.
"Mãe", Ana disse, a voz calma interrompendo a alegria deles. "Se eu morresse amanhã, você sentiria minha falta? Você choraria por mim?"
O silêncio caiu sobre a sala. Todos olharam para ela como se ela tivesse enlouquecido.
Sua mãe foi a primeira a se recuperar. "Que pergunta horrível, Ana! Por que você diz uma coisa dessas? Para de ser tão dramática e mórbida. Estamos tentando ter um momento feliz aqui."
"É só uma pergunta", Ana insistiu, seu olhar fixo no de sua mãe.
Seu pai balançou a cabeça, desapontado. "Francamente, Ana, esse seu comportamento é inaceitável. Nós estamos elogiando sua maturidade e você vem com esse tipo de conversa para estragar tudo. Claro que ficaríamos tristes, mas você não vai morrer. Você é forte. Agora, por favor, pare com isso."
Eles não sentiriam. A resposta estava clara em seus rostos, em sua recusa em sequer considerar a possibilidade. Sua morte seria um inconveniente, uma nota triste em um dia feliz, nada mais.
Aquela foi a última gota. O último pedaço de esperança, por menor que fosse, se desfez em pó.
Ela viu Miguel entrar na sala, olhando para o grupo de adultos com incerteza. Ana se ajoelhou na frente dele, ignorando a pontada de dor em suas articulações.
"Miguel, meu amor", ela disse, sua voz suave. "A partir de hoje, a tia Clara vai cuidar de você. Ela será como uma nova mamãe. Você pode chamá-la de 'mamãe', se quiser."
Ela olhou para Clara, que a observava com um sorriso triunfante. "Ela vai te levar ao parque, vai te comprar todos os brinquedos que você quiser. Vai ser maravilhoso, não vai?"
Miguel olhou de Ana para Clara, depois para o sorriso encorajador de Pedro. A inocência infantil não viu a tragédia, apenas a promessa de diversão.
"Sério?", ele perguntou, os olhos brilhando. "Eu posso chamar a tia Clara de mamãe?"
"Claro que pode, meu tesouro", Clara disse, ajoelhando-se ao lado de Ana e abraçando Miguel. "Eu vou ser a melhor mamãe do mundo!"
"Eba!", Miguel gritou, abraçando Clara com força. "Você é a melhor, mamãe Clara!"
Pedro e os pais de Ana sorriram, satisfeitos. A cena era perfeita para eles. A transição fora concluída. A família estava completa, refeita à imagem e semelhança da vontade de Clara.
Enquanto eles se abraçavam e riam, um novo núcleo familiar se formando sobre as cinzas da antiga, Ana se levantou. Ninguém notou. Seus olhos passaram pela sala uma última vez, gravando a imagem da traição completa.
Ela se virou e caminhou em direção à porta da frente. Cada passo era pesado, um adeus silencioso a cada memória, cada sonho desfeito. Ela abriu a porta e saiu para a luz do sol, fechando-a suavemente atrás de si.
Ninguém a viu partir. Ninguém a chamou de volta.
Ela começou a andar sem rumo, para longe daquela casa, daquela vida. Ela não sabia para onde ia, apenas que precisava ir. O sol da tarde começou a se pôr, pintando o céu com tons de laranja e roxo. A força artificial da poção estava desaparecendo rapidamente. O ar ficou mais frio, e um calafrio percorreu seu corpo. Sua visão começou a escurecer nas bordas, e suas pernas fraquejaram.
Ela deu mais alguns passos trôpegos e caiu na calçada de uma rua desconhecida, a escuridão finalmente a engolindo por completo.