Capítulo 6 Peões no tabuleiro

A mansão estava silenciosa.

Silenciosa demais para alguém que sabia o que se escondia por trás de cada parede.

Leandro dormia. Corpo grande, relaxado, respiração lenta.

Ele sonhava com domínio.

Eu acordava pensando em destruição.

Desci as escadas descalça. Não havia criados à vista. O relógio marcava 3h13. O mesmo horário da minha morte na vida anterior.

Sim, eu lembrava da hora exata.

A dor vem com calendário e ponteiro.

Caminhei até o escritório. A porta estava trancada. Como sempre.

Mas no verso do quadro da biblioteca havia a chave reserva.

Ele achava que era esperto.

Mas eu era a mulher que voltou do próprio túmulo.

Abri.

Ali estavam. Pastas. Documentos. Fotografias.

Leandro documentava tudo. Quem devia, quem pagava, quem traiu, quem seria descartado.

E então encontrei.

Um contrato em nome de Augusto Santini.

Não era pequeno. Era um movimento.

Uma fusão entre duas empresas de fachada usadas por Leandro para lavar dinheiro em três países.

Santini era novo no círculo, mas não era amador.

Ele estava dentro. Mas não submisso.

Dobrei o papel e voltei a guardá-lo com precisão cirúrgica.

Nada de pressa. Nada de precipitação.

Voltei para o quarto como quem nunca saiu.

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Pela manhã, o clima estava denso.

Leandro andava com o celular na mão. Tenso. Irritado. Mandava mensagens curtas. Saía da sala quando falava.

Algo estava fora do controle.

E eu queria descobrir o que.

- Problemas, amor?

- Nada que eu não resolva - respondeu seco, sem levantar os olhos.

Traduzindo: algo importante, mas que me exclui.

Voltei para a suíte. Liguei o notebook que mantinha escondido dentro da caixa de joias, junto aos dados criptografados da minha primeira vida. As cópias que fiz antes de morrer, nos dias em que comecei a suspeitar de tudo.

Pesquisei Santini.

Nascido em Florença. Três irmãos mortos em "acidentes".

Aos 28, assumiu uma holding de investimentos internacional com mais ramificações do que a justiça conseguia mapear.

Homens assim não aparecem por acaso.

Eles surgem quando o império começa a se rachar.

E Leandro, mesmo sem saber, estava ruindo.

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À noite, recebi a mensagem:

> Augusto Santini: "Você não é como os outros. E não parece do tipo que segue ordens. Encontre-me amanhã. Meio-dia. Endereço anexo."

Eu olhei para a tela por exatos 30 segundos.

Depois, apaguei a mensagem. Não por medo.

Mas porque já tinha decorado o endereço.

A guerra estava ficando mais sofisticada.

E a partir de agora, eu também.

-

No dia seguinte, escolhi um vestido sóbrio. Preto. Sem joias. Apenas presença.

Peguei um táxi comum. Desci a dois quarteirões de distância.

Segui a pé até o endereço.

Era um prédio de fachada comercial, mas ali não se fechavam contratos com papel.

Santini me esperava em um lounge privado no 12º andar.

O ambiente era escuro, luxuoso, silencioso. Havia um único copo sobre a mesa. Uísque com gelo.

O dele.

- Você veio - disse ele, sem levantar.

- Achei que era bom saber quem está brincando de aliado do Leandro.

Ele riu. Um riso breve, sem alma.

- Eu não brinco. Eu negocio.

- E o que você quer comigo?

Ele finalmente olhou nos meus olhos. Longo. Firme.

- Leandro vai cair. Eu só estou decidindo quem vai sobreviver à queda.

Fiquei em silêncio. Respiração contida. O corpo inteiro atento.

- E por que acha que eu não vou cair com ele?

- Porque você não parece feita do mesmo material que ele. Você não parece leal.

E isso, Bianca, é uma qualidade.

Nos encaramos por alguns segundos que pareceram longos demais.

Ele sorriu de lado, quase imperceptível.

- Então, quer conversar... ou vai continuar fingindo que só está aqui pela curiosidade?

- Então, quer conversar... ou vai continuar fingindo que só está aqui pela curiosidade?

A pergunta pairou no ar como fumaça de pólvora. Eu podia respondê-la de mil formas. Rir. Fugir. Mentir. Mas escolhi o mais perigoso.

- Eu vim te observar.

- Você parece alguém que se mantém de pé enquanto o chão desaba. E isso me interessa.

Santini apoiou os cotovelos no braço da poltrona. O copo ainda em uma das mãos. Ele girava o gelo como se esperasse que eu dissesse mais.

Mas eu não disse.

O silêncio também era uma arma.

- E você, Bianca? - ele quebrou a pausa. - É leal ao homem que matou a própria reputação com o ego?

- Eu sou leal a mim.

- Ótimo. Eu também.

Ele se levantou. Alto. Ombros largos. A postura de quem manda sem precisar gritar.

Parou a poucos passos de mim.

- O Leandro acredita que ainda governa este território. Mas já tem gente cavando a cova dele com taças de champanhe nas mãos.

- Eu sei.

- E você, Bianca... - ele me olhou com intensidade quase cruel - quer ser viúva ou herdeira?

- Quero ser a juíza.

A resposta fez Santini sorrir. Dessa vez, com algo mais do que tédio. Algo entre respeito e cálculo.

Talvez desejo.

- Então estamos conversando, afinal.

Ele caminhou até uma mesa no canto da sala. Puxou uma pasta preta.

Voltou e a entregou sem cerimônia.

- O conteúdo disso pode destruir uma parte do império de Leandro. Contas, movimentações, nomes.

Mas eu não te dou isso à toa.

- Claro que não - falei, pegando o material. - Ninguém dá dinamite na mão de alguém que não tem alvo.

- Eu quero saber se você é inteligente o bastante pra usar isso com precisão... e não se perder no processo.

Santini voltou a se sentar. Relaxado. Mas os olhos ainda cortavam.

- Qual é o seu papel nessa história? - perguntei. - Aliado, oportunista, carrasco?

- Nenhum. Eu sou só o homem que enxerga quando a rainha está se movendo no tabuleiro.

- E se ela resolver atacar você?

-Espero que ela saiba o que está fazendo.

Por um segundo, houve silêncio.

Mas não era desconfortável.

Era o silêncio de duas presas que ainda não decidiram se vão se matar ou se unir.

Eu me levantei primeiro.

- Obrigada pelo chá - disse, embora só houvesse uísque na mesa.

- Não foi chá. Foi guerra fria.

- Então estava delicioso.

Caminhei até a porta. Parei, já com a mão na maçaneta.

- Santini...

- Sim?

- Você é o primeiro homem que me dá algo sem tocar em mim.

Ele não respondeu. Mas aquele meio sorriso voltou aos lábios.

E eu saí.

Com os documentos na bolsa.

E uma nova certeza no peito.

Augusto Santini era um problema.

Ou uma saída.

Mas Leandro, Júlia e o resto ainda nem sabiam que Bianca Rocchi tinha acabado de fazer a primeira aliança fora do império deles.

E o mundo dos homens que mandavam estava prestes a lembrar o que acontece quando subestimam uma mulher traída.

                         

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