A primeira coisa que senti foi a raiva da minha irmã, Júlia, o grito dela cortando o silêncio da tarde.
"O que é isso?"
Ela segurava um envelope amassado na mão, o emblema da universidade estrangeira brilhando sob a luz fraca do quarto. Meu coração parou. Eu tinha escondido aquilo tão bem, no fundo da gaveta de meias, debaixo de pilhas de coisas velhas que ninguém nunca mexia.
"Me devolve isso, Júlia. Não é da sua conta."
Tentei pegar o envelope de volta, mas ela foi mais rápida, recuando com um olhar que eu nunca tinha visto antes. Era uma mistura de inveja e ódio puro.
"Não é da minha conta? Você ia fugir, não é? Ia para o outro lado do mundo e deixar a gente aqui, se virando sozinhos."
A voz dela atraiu minha mãe, Marta, que apareceu na porta do quarto, secando as mãos em um pano de prato.
"O que está acontecendo? Por que essa gritaria?"
Júlia não respondeu, apenas estendeu o envelope para a nossa mãe. Marta pegou o papel, seus olhos percorrendo as linhas rapidamente. O rosto dela, que antes mostrava curiosidade, se fechou. A expressão se tornou dura, fria. Ela olhou para mim, e pela primeira vez na vida, eu não vi minha mãe, vi uma estranha.
"É verdade, Lara? Depois de tudo que sacrificamos por você, você ia nos abandonar?"
A palavra "abandonar" soou como uma sentença. Eu tentei me explicar, dizer que era uma bolsa de estudos integral, que era a nossa chance de sair daquela vida, que eu poderia ajudar muito mais de lá. Mas as palavras não saíam. A garganta fechou.
A mão da minha mãe voou na direção do meu rosto. O tapa foi forte, estalado, e fez meu rosto virar. A dor aguda foi seguida por um zumbido no meu ouvido. Fiquei em choque, a mão no meu rosto, olhando para ela sem acreditar.
"Sua ingrata."
Ela cuspiu a palavra.
Foi nesse momento que meu pai, Sérgio, chegou em casa. Ele ouviu a confusão e entrou no quarto, o cheiro de suor e graxa do trabalho impregnado na roupa dele.
"Que bagunça é essa?"
Júlia, com um sorriso vitorioso, apontou para mim.
"A Lara ia fugir do país. Ia deixar a gente na mão."
Meu pai olhou para a carta, depois para mim. O cansaço em seu rosto deu lugar a uma fúria sombria. Ele não disse uma palavra. Apenas caminhou até mim e agarrou meu braço com força. Suas unhas cravaram na minha pele.
"Você não vai a lugar nenhum."
A voz dele era baixa, ameaçadora. Ele me arrastou para fora do quarto, me jogando no chão da sala. Minha cabeça bateu na quina da mesinha de centro. Uma dor explosiva se espalhou pelo meu crânio, e pontos pretos dançaram na minha visão.
Júlia e minha mãe apenas observavam da porta do quarto, seus rostos impassíveis. Ninguém fez nada para me ajudar.
Meu pai pegou meu celular da mesa.
"Não vai precisar mais disso."
E o arremessou contra a parede. O aparelho se espatifou, a tela se tornando uma teia de aranha de vidro quebrado. Ele me pegou pelos cabelos e me arrastou de volta para o meu quarto, me jogando lá dentro como um saco de lixo.
"Você vai ficar aí até aprender qual é o seu lugar."
Ele bateu a porta e eu ouvi o som da chave girando na fechadura. Fiquei ali, no chão frio, a dor latejando na minha cabeça, no meu rosto, no meu braço. O mundo ficou escuro. A última coisa que pensei foi na pergunta que não saía da minha mente: por quê? Depois, tudo ficou preto.
Então, abri os olhos.
A luz do sol entrava pela janela, exatamente como antes. O cheiro de café fresco vinha da cozinha. Sentei na cama, confusa. Minha cabeça não doía. Meu rosto não ardia. Olhei para o meu braço, não havia marcas de unhas.
Levantei e caminhei, tremendo, até a sala. Meu celular estava intacto sobre a mesinha de centro. Peguei-o. A tela acendeu. A data era a mesma do dia anterior. O dia em que tudo aconteceu.
Eu estava de volta. Eu tinha renascido no início do meu pesadelo.