Coma Falso, Coração Partido
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Capítulo 1

A urna em minhas mãos estava fria, um peso morto que não se comparava em nada com o calor dos corpos que um dia abrigaram as cinzas lá dentro. Eu caminhava sem rumo pelas ruas, o cheiro do crematório ainda impregnado em minhas roupas. Em apenas um ano, enterrei três pessoas. Não, nem mesmo enterrei, eu as queimei. Mãe, pai e minha irmãzinha. As cinzas deles estavam misturadas, porque eu não tinha mais dinheiro nem para comprar urnas separadas.

Tudo começou com Juliana. Minha noiva, a mulher que eu amava mais que tudo. Um ano atrás, ela sofreu um pequeno acidente de carro e entrou em coma. Os médicos diziam que era um caso raro, que precisava de tratamentos caros e experimentais. Para pagar as despesas médicas exorbitantes, nossa família vendeu tudo. A casa modesta onde cresci, as poucas joias que minha mãe tinha, tudo se foi. Pedimos dinheiro emprestado a todos que conhecíamos, acumulando dívidas que eu sabia que levaria o resto da vida para pagar.

Então, o primeiro golpe. Minha mãe, uma mulher forte que nunca reclamava, foi diagnosticada com um tumor cerebral. Os médicos disseram que a cirurgia era arriscada e cara. Vendo o nosso desespero, ela decidiu não ser mais um fardo. Numa manhã, a encontrei na cozinha, um copo vazio ao lado de sua mão e um bilhete simples na mesa. "Meu filho, me perdoe. Não aguento mais ser um peso para vocês." Ela bebeu veneno.

Meu pai, já abalado pela morte da esposa e pela situação de Juliana, se esforçava em dobro. Ele trabalhava como operário de construção, subindo e descendo andaimes sob o sol forte. Em um dia de calor insuportável, ele sofreu uma insolação e caiu do vigésimo oitavo andar. A empresa alegou que ele não usava o equipamento de segurança corretamente e nos deu uma indenização miserável, que mal cobriu os custos do funeral.

Restávamos apenas eu e minha irmã mais nova, Bia. Ela nasceu com uma deficiência intelectual, era a inocência em pessoa, a única luz que ainda restava em minha vida. Com a família desestruturada e sem dinheiro, viramos alvos fáceis. Traficantes de pessoas a sequestraram, pensando que poderiam arrancar um resgate de nós. Mas não tínhamos nada. Quando a polícia finalmente a encontrou, semanas depois, era apenas um corpo mutilado jogado em um terreno baldio.

Agora, aqui estava eu, com as cinzas de três vidas em uma única urna barata. Atravessei a rua, a mente vazia, o corpo movendo-se por puro instinto. O som de pneus cantando no asfalto me tirou do torpor. Um carro esportivo vermelho freou bruscamente, mas tarde demais. A pancada me jogou no chão. A dor na minha perna foi aguda, mas meu primeiro reflexo foi olhar para a urna. Ela rolou das minhas mãos, bateu na calçada e se partiu. As cinzas da minha família se espalharam pelo asfalto sujo, misturando-se com a poeira da rua.

A porta do motorista não se abriu. Em vez disso, o vidro escuro desceu lentamente. E então, eu a vi.

O mundo inteiro parou.

Juliana Costa, a mulher que deveria estar em coma, em uma cama de hospital, lutando pela vida. Ela estava sentada ao volante, perfeitamente maquiada, usando óculos de sol de grife. Parecia irritada com o contratempo.

Uma de suas amigas no banco do passageiro riu alto.

"Juju, um ano fingindo de coma e até sua habilidade de dirigir piorou?"

Outra voz, vinda do banco de trás, zombou.

"Você é cruel mesmo, pensar nessa armadilha para testar a família Silva. Eles são tão trouxas."

Juliana nem sequer olhou para mim, caído no chão no meio dos restos da minha família. Ela tirou um maço de notas da bolsa, notas de cem reais, e jogou pela janela. O dinheiro flutuou no ar e pousou sobre as cinzas.

Seu sorriso era distraído, quase entediado.

"A família Silva é tão pobre, quem sabe se eles não estão de olho na minha fortuna? Um teste é necessário."

Ela acelerou, o motor roncando. Antes de partir, ela disse uma última frase, que ecoou na minha cabeça como uma sentença de morte.

"Quando a família inteira passar no teste, eu não vou decepcioná-los."

O carro esportivo disparou, desaparecendo na esquina.

Fiquei ali, no chão. Minha perna latejava, mas eu não sentia nada. Meus olhos estavam fixos nas cinzas espalhadas, agora profanadas pelo dinheiro sujo dela. O coma era falso, a doença era uma mentira, o nosso sofrimento era um jogo. Minha mãe, meu pai, minha irmã... eles morreram por causa de um "teste".

As lágrimas finalmente vieram, silenciosas e quentes, escorrendo pelo meu rosto e pingando no asfalto. Juliana Costa, nós não temos mais futuro. Acabou.

Enquanto eu tentava me levantar, apoiando-me na perna boa, um outro carro, um sedã preto elegante que estava parado atrás do carro de Juliana, buzinou levemente. A porta se abriu e um homem de terno caro e sapatos brilhantes desceu. Ele caminhou até mim com uma calma perturbadora. Seus olhos avaliaram a cena: eu, as cinzas, o dinheiro.

Ele estendeu a mão para me ajudar a levantar. Eu hesitei.

"Parece que você teve um dia ruim", ele disse, com uma voz suave, mas com um tom de ironia. "Eu sou Pedro Antunes."

Ele fez uma pausa, como se esperasse que o nome significasse algo. Vendo minha confusão, ele adicionou, com um sorriso fino e calculista.

"Ex-marido dela."

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