Coma Falso, Coração Partido
img img Coma Falso, Coração Partido img Capítulo 3
4
Capítulo 5 img
Capítulo 6 img
Capítulo 7 img
Capítulo 8 img
Capítulo 9 img
Capítulo 10 img
img
  /  1
img

Capítulo 3

O aperto no braço de Juliana a fez recuar, mais por surpresa do que por dor. Ela me olhou como se eu fosse um completo estranho. E, de fato, eu era. O Miguel que a amava, que sacrificaria tudo por ela, estava morto e enterrado junto com as cinzas da sua família.

"O que deu em você, Miguel?", ela disse, esfregando o braço. "Eu vim até aqui, preocupada. Você sumiu, não atende o telefone."

Preocupada. A palavra soou como um insulto.

"Você não sabe o que é preocupação", respondi, minha voz fria como gelo. Eu me virei e caminhei lentamente até a sala de estar, cada passo com a perna engessada era um lembrete físico da minha nova realidade. "Você vive em uma bolha de privilégios, onde as pessoas são brinquedos e os sentimentos são um jogo."

Ela me seguiu, sua impaciência crescendo. "Eu já disse que foi um teste! Um teste para o nosso futuro! Eu ia me casar com você, Miguel! Eu ia te dar tudo! Queria ter certeza de que você era digno, que sua família não era um bando de aproveitadores."

Ela olhou ao redor da casa simples, para os móveis velhos que os novos donos ainda não haviam retirado. "Eu ia tirar vocês dessa... dessa pobreza. Íamos morar em uma mansão, viajar pelo mundo. Seus pais teriam o melhor tratamento, sua irmã teria os melhores cuidadores."

As palavras dela eram facas, revirando minhas feridas abertas. Ela falava dos meus pais e da minha irmã como se eles ainda estivessem vivos, como se o futuro que ela pintava ainda fosse possível. A ignorância dela era tão profunda quanto sua crueldade.

Eu não respondi. Fui até a lareira apagada e peguei o último porta-retrato que restava ali. Uma foto de nós quatro: meu pai sorrindo, com o braço em volta da minha mãe; eu, mais jovem, segurando Bia nos ombros. O rosto de Bia estava radiante de alegria. Era de um aniversário dela, o último que comemoramos juntos antes de Juliana entrar em nossas vidas.

Passei o polegar sobre o rosto sorridente de Bia.

"Eles se foram, Juliana."

"Eu sei que eles se foram. Foi o que você disse na rua", ela respondeu, impaciente. "É triste, eu sinto muito, de verdade. Mas a vida continua. Nós continuamos."

Sua incapacidade de compreender a magnitude do que ela havia causado era assustadora. Para ela, a morte da minha família era um obstáculo inconveniente, um detalhe trágico em sua grande história de amor.

"Não existe 'nós'", eu disse, sem olhar para ela, minha atenção toda na fotografia.

Ela bufou, frustrada. "Chega de drama, Miguel. Eu não vim aqui para discutir. Vim te buscar. Tenho uma festa na casa dos meus pais esta noite. Quero apresentar você oficialmente como meu noivo que 'se recuperou' junto comigo. Vai ser bom para nós."

Não era um convite, era uma ordem. Ela esperava que eu simplesmente limpasse minhas lágrimas, esquecesse minha família morta e desempenhasse o papel que ela havia escrito para mim em sua farsa.

"Eu não vou a lugar nenhum com você."

"Não seja ridículo", ela insistiu, pegando a bolsa. "Você precisa sair dessa fossa. Coloque uma roupa decente. Eu te espero no carro."

Ela se virou para sair, tratando minha recusa como um capricho infantil. A arrogância dela era sufocante. Eu sabia que discutir seria inútil. Ela não ouviria. Então, eu mudei de tática.

"Tudo bem", eu disse.

Ela parou e se virou, um sorriso triunfante no rosto. "Eu sabia que você ia entender."

A festa era um desfile de riqueza e superficialidade. Pessoas com sorrisos falsos e roupas de grife me davam tapinhas nas costas, parabenizando-me pela minha "recuperação milagrosa" e pela minha sorte em ter Juliana. Cada palavra era um veneno.

Juliana me exibia como um troféu. "Este é o Miguel, meu noivo. Passamos por muita coisa juntos, mas nosso amor venceu."

As pessoas aplaudiam. Eu sorria, um sorriso vazio que não alcançava meus olhos.

Então, Pedro Antunes apareceu. Ele caminhou até nós com a mesma elegância predatória que eu vi na rua.

"Juju, querida. E Miguel. Que bom ver vocês dois juntos e... saudáveis", ele disse, a palavra "saudáveis" carregada de sarcasmo.

Juliana ficou tensa. "Pedro. O que você quer?"

"Apenas cumprimentar o feliz casal. E te parabenizar, Miguel. Você sobreviveu a Juliana. Muitos não têm a mesma sorte", ele disse, olhando diretamente para mim. Era uma provocação, mas também um aviso.

Alguns convidados próximos ouviram e riram, achando que era uma piada de ex-marido ciumento. Mas eu sabia que não era.

Juliana, querendo evitar uma cena, me puxou para o outro lado do salão. "Não ligue para ele. Ele é só um amargurado porque eu o deixei."

Mais tarde, enquanto Juliana estava distraída conversando com um grupo de amigas, fiquei perto da varanda, observando a cidade iluminada. Eu me sentia um fantasma naquela festa. Pedro se aproximou novamente.

"Ela te contou como o nosso casamento terminou?", ele perguntou em voz baixa.

"Não."

"Claro que não. Eu pedi o divórcio depois que descobri que ela estava me traindo e, ao mesmo tempo, desviando dinheiro da minha própria empresa para cobrir as dívidas de jogo do amante dela. Ela quase me levou à falência. A família dela interveio, me pagou para ficar quieto e limpou a bagunça. O acordo de divórcio a deixou com uma parte da fortuna que, na verdade, era minha. Ela é uma parasita, Miguel. Sempre foi."

A informação se encaixou com o resto do quebra-cabeça. O padrão de engano, a manipulação, o uso das pessoas.

Juliana voltou, notando a conversa. Ela parecia irritada.

"Miguel, querido, vamos. Meus pais querem falar com você."

Ela me levou até um casal de idosos com expressões severas, os pais dela. Eles me avaliaram de cima a baixo com um olhar frio.

"Então você é o rapaz", disse o pai de Juliana, o Sr. Costa. "Espero que você saiba o valor da nossa filha. Ela fez muito por você."

Eu mantive meu sorriso vazio. Enquanto eles falavam sobre o futuro, sobre o casamento, sobre como eu seria integrado aos negócios da família, eu apenas concordava com a cabeça.

Quando a conversa terminou e Juliana me levou para pegar uma bebida, eu me inclinei e disse, casualmente, perto do ouvido dela:

"É engraçado, não é? Meu pai morreu trabalhando para a Costa Construtora."

O sorriso de Juliana congelou. Seu rosto perdeu toda a cor. Ela me olhou, os olhos arregalados de pânico. Pela primeira vez naquela noite, eu vi uma rachadura em sua fachada de controle absoluto. Ela sabia. Ela sempre soube.

E naquele momento, ela soube que eu sabia também.

---

            
            

COPYRIGHT(©) 2022