Capítulo 3 Entre Duas Vidas

O quarto de hotel parecia um santuário luxuoso, mas para Mía era uma cela disfarçada. As cortinas de veludo bordô mal deixavam entrar a luz da tarde, criando um jogo de sombras que deslizavam pelas paredes estofadas. O silêncio era um cobertor pesado que amplificava cada batimento cardíaco, e o atrito constante do vestido contra sua pele sensível e tensa era angustiante.

O ar cheirava a jasmim e madeira velha, um estranho contraste com a modernidade fria dos móveis. Mía afundou na poltrona de frente para a janela, observando seus dedos tamborilarem nervosamente no braço de couro. Lá fora, a cidade vibrava com indiferença, suas luzes piscando como pequenas estrelas sem alma, alheias às mentiras que se teciam dentro daquele quarto.

O anel que ela ainda usava no dedo brilhava fracamente na luz, uma joia que não lhe pertencia, símbolo de um pacto selado com segredos e medo. Cada vez que olhava para ela, sentia uma pontada de culpa e ansiedade, como se a pedra preciosa contivesse a essência da verdadeira Lara Salazar e a encarasse com um olhar acusador.

Flashback:

Lara cerrou os punhos, sua rebelião ainda queimando como uma chama que se recusava a se apagar. Ela não queria desistir, não queria se esconder atrás de uma mentira, mas o perigo era real e latente, próximo demais para ser ignorado.

"Não há outra opção", disse ela com a voz rouca, seus olhos escuros buscando nos de Mía uma centelha de esperança. "Só dois dias. O casamento e a lua de mel. Depois disso, tudo voltará ao normal."

Mía assentiu, compreendendo o peso daquela decisão. Não era apenas um trabalho; era a última carta que Lara poderia jogar para salvar o que amava.

"Faremos isso direito", sussurrou Mía. "Juntas."

Mas, no fundo, Lara odiava cada segundo daquela mentira iminente.

A porta se abriu suavemente, e uma brisa fresca soprou seu aroma no quarto, misturando-se ao suor frio que umedecia a nuca de Mía. Héctor havia saído para atender uma ligação urgente, um daqueles maus hábitos que sempre teve e que faziam o sangue de Lara ferver. Ele não conseguia se desligar do trabalho, nem por um instante, nem mesmo na lua de mel. Mas Mía, com sua paciência e compreensão, o aceitou sem repreensão, ou pelo menos fingiu.

Ela se levantou, seus passos mal fazendo barulho no carpete aveludado. Caminhou até a janela, apoiou as mãos no vidro frio e olhou para a cidade que se estendia até o horizonte, um mar de luz e sombra. Ela se perguntou por quanto tempo mais conseguiria sustentar aquela mentira, por quanto tempo mais conseguiria suportar o peso da vida de outra pessoa.

Flashback:

Lara não conseguia se lembrar exatamente quando começou a desvanecer. Talvez tenha sido naquela noite em que Héctor a olhou com olhos que não a viam mais, ou no dia em que recebeu o ultimato, um telefonema carregado de ameaças que se apertou como um laço invisível em seu pescoço.

"Se você quer salvar o que resta da sua vida, confie em mim", dissera a voz do outro lado da linha, fria e calculista.

Mía Castellanos não era uma atriz comum; ela era seu último recurso, a única saída que poderia lhe dar tempo e esperança.

No quarto, Mía sentia a irritação crescente sob a prótese de silicone. O adesivo começava a ceder com o calor e o suor, e cada movimento a fazia perceber o perigo latente. Era como usar uma máscara de vidro, preciosa, mas frágil, que poderia se romper ao menor toque.

Ela levou a mão ao rosto, tocando a borda onde a prótese terminava e sua pele real começava. O toque áspero lhe causou um arrepio na espinha. Ela sabia que, a qualquer momento, aquele véu poderia cair.

A porta se abriu e Héctor entrou, com aquela sombra de sorriso que não alcançava seus olhos. Ele se movia com a confiança de quem governa o mundo, mas havia uma tensão invisível nele, uma suspeita que ele não conseguia esconder.

"Você está bem?", perguntou ele, mas a frase soou mais como um teste do que uma preocupação real.

Mía forçou um sorriso e assentiu. "Perfeitamente. Só cansei de tanto protocolo."

Ele não pareceu convencido, mas também não insistiu. Inclinou-se, colocou a mão firme em sua cintura e sussurrou em seu ouvido:

"Lembre-se, a perfeição não é opcional hoje."

Flashback:

Na noite anterior à assinatura do contrato, Lara chorou pela primeira vez em meses. Não de medo, mas de raiva, da humilhação de ter que abrir mão da própria vida.

"Prometa que ninguém vai sofrer por causa disso", sussurrou ela, com a voz embargada e as mãos trêmulas nas de Mía.

A atriz a olhou com ternura e determinação. "Eu prometo." Não vou deixar essa mentira destruir mais do que já destruiu.

Mas ambos sabiam que o preço seria alto e que as feridas não cicatrizariam facilmente.

Na penumbra do quarto, Mía se olhou no grande espelho antigo pendurado na parede. A mulher refletida ali não era ela, nem Lara. Ela era um híbrido, um amálgama quebrado de duas vidas que nunca poderiam se fundir completamente.

Ela sentia o olhar invisível de Heitor fixo nela, um falcão paciente à espera do menor deslize. E enquanto a cidade prosseguia seu curso indiferente, a mentira continuava a ser tecida a cada suspiro, a cada gesto ensaiado, a cada palavra comedida.

            
            

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