Aquela sala era ampla, com janelas que iam do chão ao teto, revelando a cidade em toda sua glória caótica. O céu estava cinzento agora, e carros se arrastavam lá embaixo como formigas em marcha lenta. Dentro da sala, tudo era vidro, aço e silêncio. Cada centímetro gritava "poder", e Dante era a personificação disso.
Sentei onde ele indicou, as mãos segurando a xícara com tanta força que, se fosse de vidro, já teria estilhaçado. O ar estava pesado, como se o próprio ambiente soubesse que algo fora do script estava prestes a acontecer.
Ele se sentou à minha frente, ajeitou a manga do paletó e cruzou os dedos sobre a mesa.
- Você está enfrentando algum tipo de processo judicial, não está?
Não era uma pergunta. Era um diagnóstico. Preciso, quase clínico.
Assenti lentamente, sentindo a garganta fechar.
- Pela guarda da minha irmã. - As palavras saíram baixas, partidas. - Recebi hoje uma notificação do juizado. Tenho trinta dias para provar que posso continuar com ela.
Ele não reagiu de imediato. Apenas piscou devagar, como se estivesse absorvendo cada sílaba.
- E não pode?
- Não... segundo os critérios deles. - Tentei não chorar de novo. - Eles querem ver estabilidade, família estruturada, renda sólida. E... bom, eu sou só uma assistente, num apartamento de dois cômodos, sem marido, sem parentes próximos.
- E o pai da menina?
- Desconhecido. Minha mãe nunca contou. Ela morreu há três anos. - Respirei fundo. - Desde então, Leti é minha responsabilidade.
Dante se recostou na cadeira, os olhos fixos em mim como se estivesse analisando um contrato de risco.
O silêncio entre nós durou longos segundos. Lá fora, uma sirene soou distante, e dentro da sala, o som do ar-condicionado parecia mais alto que o normal.
- E o que pretende fazer? - ele perguntou.
- Não sei. Já pensei em pedir ajuda a uma amiga para fingir que somos... algo. Mas isso seria um risco. Se eles descobrem que menti, posso perder de vez.
Dante ficou em silêncio por mais um momento. Depois, soltou uma frase que mudou tudo:
- Eu posso me casar com você.
Eu pisquei. Várias vezes. E ri. Uma risada nervosa, quase desesperada.
- O quê?
- Um casamento. Comigo. Um contrato entre nós. Curto, prático. Legalmente válido. Você terá o que precisa: um lar estruturado, estabilidade, nome forte. E eu também saio ganhando.
- Você... sairia ganhando?
Ele se recostou mais uma vez, ajeitando o relógio de pulso de forma calculada. Como se cada movimento dele fosse cronometrado.
- A empresa que estamos negociando no exterior tem valores familiares. Conservadores. Estão relutantes com a fusão porque acham que eu sou "inconstante". Ter uma esposa me tornaria mais... confiável. A imagem importa, infelizmente.
Minha mente girava, tentando absorver tudo. Aquilo não era real. Meu chefe - frio, calculista, totalmente alheio a emoções - estava me propondo casamento?
- Isso é loucura. Você mal me conhece.
- Conheço o suficiente. - Ele me lançou um olhar firme. - Você é leal, responsável, discreta. Nunca vi você se envolver em fofoca de corredor, nunca chegou atrasada, nunca pediu um favor pessoal. Você é... estável, mesmo sem parecer.
Aquilo doeu. Talvez porque fosse verdade.
- E... você casaria só para parecer mais "aceitável" aos olhos de uma empresa?
- Sim. E você casaria para salvar sua irmã. É uma troca. Dois adultos conscientes de seus interesses.
Passei a mão no rosto, tentando entender em que momento minha vida virou esse filme surreal. Dante Navarro era um homem impenetrável, feito de aço e silêncio. E agora ele queria assinar um contrato de casamento como se fosse mais uma cláusula comercial?
- E depois? Quando acabar o contrato? - perguntei, a voz fraca.
- Nos separamos. Sem drama. Eu cuido de toda a papelada. Você não perde nada. E Letícia continua com você.
Aquilo parecia simples demais para algo tão absurdo. Mas havia algo na frieza dele que fazia parecer... seguro. Como se, justamente por não envolver sentimentos, fosse à prova de desastres.
- Ninguém pode saber - ele acrescentou. - Nem na empresa, nem fora. Temos que parecer convincentes, mas discretos. Tudo o que fizermos será ensaiado, estratégico.
- Como uma peça de teatro?
- Exato. Uma encenação eficiente.
Fechei os olhos. Pensei em Leti. No jeito como ela me chamava de "mana-mãe", no caderno de desenhos onde sempre desenhava nós duas com uma casa ao fundo. Pensei nos olhos dela ao acordar, nos abraços apertados, nos medos que ela só confiava a mim.
Eu não tinha muitas escolhas. Só uma. E ela estava sentada à minha frente, vestindo um terno de quinze mil reais e me oferecendo o único tipo de amor que sabia dar: prático, conveniente, calculado.
- Você... está mesmo disposto a fazer isso por mim? - perguntei.
- Estou disposto a fazer isso por mim - ele corrigiu, sem hesitar. - A sua situação apenas se alinha à minha.
Era a resposta mais Dante que eu poderia receber.
- E se você... sei lá... se arrepender? - murmurei.
- Eu não costumo me arrepender. Planejo demais para isso.
Suspirei. A xícara nas minhas mãos já estava fria. Eu também. Mas havia algo dentro de mim que queimava - talvez fosse instinto. Ou talvez fosse o começo de um desastre muito bem disfarçado.
- Preciso de alguns dias - sussurrei.
- Não temos dias. - Ele me encarou. - Temos trinta. Cada detalhe do processo judicial precisa estar impecável. Você precisa parecer casada. E feliz.
Sorri, amarga.
- Vai ser difícil parecer feliz ao seu lado.
Ele arqueou uma sobrancelha.
- Eu ouvi isso.
- Era pra ouvir.
Dante se levantou, ajustou o paletó, e estendeu a mão.
- Então?
Olhei para a mão dele. Grande, firme, com o anel prateado minimalista que ele sempre usava no dedo indicador. Aquela mão nunca tocou a minha. Não do jeito que um homem toca uma mulher. Mas ali estava ela, me oferecendo um contrato. Um futuro. Uma mentira que, se funcionasse, poderia salvar tudo o que eu amava.
Coloquei minha mão na dele.
- Aceito.
E naquele aperto de mãos, selamos o destino que ainda não sabíamos onde ia dar.