Letícia sorriu e segurou minha mão mais forte. Andamos devagar até o portão da escola, com aquele vento frio da manhã fazendo as folhas secas se acumularem nas calçadas. O céu estava nublado, um cinza azedo que parecia combinar com o que eu estava prestes a fazer.
- Você vem me buscar, né? - ela perguntou antes de entrar.
- Sempre.
Ela se despediu com um beijo demorado na bochecha. E, naquele instante, eu soube. Por mais absurda que parecesse, aquela decisão que tomei ontem - aceitar o contrato de casamento com Dante - era o único caminho possível.
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O metrô estava lotado, como sempre. A cidade parecia cuspir pressa por todos os cantos. E, mesmo envolta no empurra-empurra do horário de pico, eu só conseguia pensar em uma coisa:
Como, exatamente, se finge um casamento?
Era isso que ele queria discutir hoje. As regras, os termos, os limites. Um contrato. Como se sentimentos pudessem ser organizados em cláusulas.
Quando desci na estação da empresa, minhas mãos suavam. Meu estômago também parecia estar prestes a assinar sua própria carta de demissão. Algo em mim já sabia que a vida estava prestes a mudar para sempre.
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O 23º andar da Navarro Empreendimentos era um mundo à parte.
Os corredores cheiravam a madeira polida e café caro. A iluminação era branca, fria, e cada funcionário parecia sair direto de uma revista de moda executiva. Eu andava firme, tentando parecer como sempre - confiante, apressada, invisível. Mas hoje, tudo estava diferente.
- Luna?
A voz veio de Paula, da recepção.
- O senhor Navarro pediu para você ir direto à sala dele assim que chegasse.
Olhares se voltaram para mim. Alguns discretos, outros escancaradamente curiosos.
Senti o calor subir no rosto, mas continuei andando. As paredes de vidro da empresa não ajudavam: era impossível passar despercebida. Tudo ali era exposição. E eu estava prestes a sentar no olho do furacão.
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A sala dele era como sempre: impecável, minimalista, com uma vista panorâmica da cidade que fazia qualquer um se sentir pequeno.
Dante estava de pé, ao lado de uma mesa auxiliar onde havia duas xícaras de café e uma pasta de couro preta. Usava um terno cinza escuro hoje, com gravata preta, e a expressão de quem já tinha resolvido o mundo antes das oito da manhã.
- Sente-se - ele disse sem desviar os olhos da janela.
Obedeci. Meu coração batia rápido demais.
- Algum problema? - perguntei, quando o silêncio se alongou.
- Nenhum. Apenas avaliando o caos lá fora. Gosto de saber que, ao menos aqui, posso controlar as variáveis.
Sorri com ironia.
- Que sorte a sua.
Ele se virou com um olhar demorado, me estudando.
- Pronta para definir nosso contrato de casamento?
Engoli em seco.
- Não sei se alguém está realmente pronto pra isso, mas... vamos lá.
Ele puxou a pasta e abriu, revelando uma pilha de papéis organizados por marcadores. Claro que ele já tinha um plano.
- Aqui estão os principais pontos. Podemos revisar e adaptar, mas preciso que tudo esteja assinado ainda hoje.
- Hoje?
- Sim. Quanto antes oficializarmos, mais convincente será nossa história. Temos que apresentar documentos e fotos até o fim da semana.
- Fotos?
- De casal. Passeios. Festas. Viagens, se possível.
- Viagens? - repeti, quase engasgando.
- Nada muito longo. Um final de semana no interior, por exemplo. Precisa parecer natural. Espontâneo.
- Nada em você é espontâneo, Dante.
Ele ignorou o comentário e continuou.
- Regra número um: aparições públicas. Vamos a dois eventos sociais por mês, juntos. Nada escandaloso, mas suficiente para que "vejam" nosso relacionamento evoluindo.
- Eventos. Ok.
- Regra dois: convívio mínimo. Você se muda para minha cobertura esta semana.
- O quê? - Me levantei, o sangue subindo.
- Calma. É só por alguns meses. Precisamos parecer casados. Endereço compartilhado, contas conjuntas, rotina realista.
- Mas a Leti...
- Terá um quarto só dela. Já mandei preparar.
Ele disse isso como se estivesse organizando uma planilha, não moldando a vida de uma criança. Sentei novamente, respirando fundo.
- Isso é rápido demais.
- Está com medo?
- De você? Um pouco.
Ele finalmente sorriu. Um canto do lábio apenas. Quase imperceptível, mas ainda assim... perigoso.
- Não sou um monstro, Luna.
- Não. Mas também não é um ser humano fácil de conviver.
Ele fez uma anotação e continuou:
- Terceira regra: contatos físicos. Precisamos parecer íntimos.
- Tipo...?
- Mãos dadas, abraços casuais. Beijos, se necessário.
- Se necessário? - Minha voz saiu mais aguda do que eu gostaria.
- Algumas pessoas vão observar. Familiares, advogados, funcionários. Precisamos ser convincentes.
- E se eu... não conseguir fingir?
Ele me olhou como se fosse um investidor ouvindo uma objeção ridícula.
- Você já vive fingindo que está tudo bem, Luna. Isso não será tão difícil.
Aquela frase me acertou como uma facada.
- Isso é cruel.
- É verdade.
Silêncio.
- E sobre nós... de verdade? Nada... íntimo?
- Não. A não ser que você queira.
- Eu não quero. - Fui firme, mas novamente vejo o pequeno sorriso em seus labios como se duvidasse. Mas desaparece novamente.
- Ótimo. Sentimentos fora do contrato. Tudo que formos será estratégia.
A frase ficou ecoando na sala. Tudo que formos será estratégia. Era uma forma fria de dizer que o coração não teria vez.
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Assinamos os papéis minutos depois. Caneta dourada, assinatura firme dele, assinatura trêmula minha.
Eu saí da sala com o coração mais pesado do que entrei. As pessoas ainda me olhavam, e agora, pela primeira vez, eu sabia que aquele segredo começaria a crescer. Um casamento. Falso. Mas ainda assim... um casamento.
- Luna? - Paula me chamou de novo, quando passei pela recepção.
- Sim?
- Você... está bem? Parece... diferente.
Sorri. Era tudo que eu podia fazer.
- Tô noiva - falei, sem pensar. E, ao ver o choque no rosto dela, continuei andando antes que ela fizesse perguntas.
Na porta do elevador, antes de entrar, me virei e olhei para o vidro fumê da sala dele. E lá estava Dante, observando, como se previsse cada passo meu.
O teatro tinha começado.
E, de algum jeito, ele já estava no controle do roteiro.