Um contrato de amor
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Capítulo 4 📖 Capítulo 4

Luna

A caixa de brinquedos da Leti rachou no meio da sala como um cofre arrombado: bonecas descabeladas, marcadores ressecados e o coelho de pelúcia sem olho escapavam pelos cantos de papelão. Eu ainda não tinha coragem de fechá-la com fita porque, no instante em que lacrasse aquela tampa, o apartamento deixaria de ser nosso e viraria só uma lembrança apertada.

Era fim de tarde - um tom alaranjado sujo pela poluição entrava pelas persianas e riscava a parede com sombras compridas. Eu me ajoelhava para embalar os últimos itens quando Leti apareceu no corredor, arrastando o chinelo de unicórnio.

- Mana-mãe, por que as coisas estão todas em caixas? - A voz dela veio fina, entre curiosa e desconfiada.

Respirei fundo. Chegara a hora da conversa que eu vinha adiando.

- Vem cá, senta comigo - pedi, batendo a palma no tapete já enrolado. Ela se acomodou no meu colo, pequena para o tamanho do peso que eu carregava.

O silêncio durou o tempo exato de três batimentos cardíacos.

- A gente vai se mudar? - Leti passou o dedo na aba rasgada da caixa, desenhando círculos invisíveis.

- Vamos, sim. Lembra que eu falei que o elevador aqui vive quebrado e a vizinha reclama do seu karaokê? - tentei brincar, mas a piada morreu antes de nascer. - Vamos morar num lugar maior, com um quarto todinho só pra você.

Os olhos dela brilharam: - Vai ter espaço pro meu tear de pulseirinhas?

- Vai, e pra uma estante de livros novos também. Mas não é só isso... - engoli o medo que subia pela garganta - ... eu também vou me casar.

Ela piscou, surpresa genuína estampada em cada traço infantil. - Casar, tipo princesa da Disney?

- Algo assim, só que sem castelo e sem ratinhos costureiros. - Sorri. - O nome dele é Dante Navarro. Você vai ganhar um tio muito legal.

- Tio? - A testa franzida virou uma montanha de dúvida. - Se ele é seu marido, não é meu pai?

Meu estômago despencou como se o chão tivesse cedido. Suspirei, passando a mão pelos cabelos dela. - Leti... papéis não fazem um pai de verdade. Pai é quem cuida, quem tá lá nos aniversários e nos ensaios da escola. A gente vai aprender juntos quem o Dante pode ser pra nós, tá bom?

Ela mordeu o lábio, pensativa. - Ele vai nos buscar na escola?

Talvez. Talvez não. Eu não sabia quantas cenas públicas Dante consideraria "estratégicas". Mas percebi que a pergunta escondia outra, maior: Ele vai ficar?

- Eu prometo que ninguém vai te deixar esperando - respondi, dando um beijo no topo da cabeça dela. - Se em algum momento você se sentir triste ou confusa, me fala. A gente resolve juntas.

- Tá. - Um fiapo de alívio despontou na voz dela. - E ele gosta de bolo de cenoura?

Soltei uma risada curta. - Ainda não sei, mas seria ótimo se você mesma perguntasse amanhã. Aposto que ele vai adorar.

Leti abriu um sorriso banguela e se levantou de um pulo.

- Posso escolher o vestido que vou usar pra conhecer ele direito?

- Pode escolher dois. - Fiz cócegas de leve na barriga dela. - Agora corre pro banho que depois a gente termina de empacotar.

Enquanto ela desaparecia pelo corredor, senti o peso do não-dito. Não contei sobre a data de validade do "felizes para sempre", nem sobre as cláusulas que definiam meu futuro como se fosse uma planilha. Leti merecia contos de fada, mas eu só podia entregar um teatro bem-ensaiado.

Chegada à cobertura

À noite, um carro da empresa nos levou até o edifício de Dante. Leti colou o rosto na janela do banco traseiro, hipnotizada pelas luzes que riscavam a avenida como fios de neon. Quando o porteiro abriu a porta de vidro espelhado, ela sussurrou um uau baixinho que reverberou dentro de mim.

Subimos quarenta andares num elevador panorâmico. Meu reflexo parecia cansado: cabelo preso às pressas, olheiras marcadas. Já Leti vibrava - pontinhas de dedos no vidro, contando quantos prédios cabiam na vista.

A porta da cobertura se abriu num tilintar suave. Piso de mármore bege, luminárias embutidas, cheiro de madeira nobre recém-encerada. E, bem no centro da sala de estar, Dante - impecável num suéter preto de gola alta, calça social e aquele olhar analítico que parecia calcular o peso do ar.

- Boa noite - disse ele, voz baixa. - Sejam bem-vindas.

Leti se agarrou à minha mão, tímida. Dante se inclinou com uma formalidade quase britânica.

- Você deve ser a Letícia. - Ele estendeu a palma, mas não forçou: esperou que ela decidisse. Ela apertou devagar, surpresa por ele se abaixar até a altura dela. - Prazer em conhecê-la. Eu sou o Dante... - Ele hesitou, buscando a palavra - ... seu novo tio, creio.

Leti piscou, depois sorriu. - Você é bem alto pra ser tio.

Ele ergueu um canto da boca, quase um sorriso. - Terei cuidado para não bater a cabeça nas portas.

Quebrado o gelo, Dante nos guiou. A cobertura parecia um catálogo de revista: cozinha aberta com bancada de pedra, lareira a gás, janelas que davam pra cidade inteira. Ao fundo, um corredor levava aos quartos.

- Preparei um espaço especial pra você, Letícia - disse ele, abrindo a primeira porta à esquerda.

O quarto era maior do que meu antigo quarto e a sala juntos: paredes em tom lavanda suave, cortinas brancas translúcidas, uma cama com dossel minúsculo de metal branco e... uma estante já ocupada por livros infantis e caixas de brinquedos novos.

Leti deu um passo, depois outro, atônita. - Isso tudo é... pra mim?

- Achei que gostaria de ter um cantinho de princesa moderna. - Dante manteve o tom neutro, como se estivesse relatando números do trimestre. Mas havia algo no jeito em que ele observava a reação dela - um leve afrouxar nos ombros, quase ternura.

Meu peito apertou.

- Posso abrir os brinquedos agora? - Leti perguntou.

- Pod... - comecei, mas Dante me cortou com um aceno suave.

- Pode sim. Só não esqueça de guardar depois, certo?

Ela correu até a estante, já rasgando plástico com energia. Dante me conduziu de volta ao corredor.

A conversa de "adultos"

Na sala de estar, ele me ofereceu um copo d'água. Eu aceitei, mãos trêmulas.

- Você realmente montou tudo hoje? - perguntei, olhando para o corredor colorido.

- Deleguei. Gosto de eficiência - respondeu, mas a rigidez da voz tinha cedido um grau.

- Ela perguntou se você seria o pai dela - confessei num sussurro.

Dante se recostou no encosto do sofá, rangendo o couro. - E o que você disse?

- Que pai é quem fica. - Cruzei os braços, defensiva. - Não quero mentir pra ela sobre algo tão grande.

- Nem eu. - Ele encarou o copo, pensativo. - Mas também não quero que se sinta privada de algo que todas as crianças merecem.

Aquilo me pegou de surpresa. - Você acredita mesmo nisso?

- Que crianças merecem segurança? Sim. - Seus olhos encontraram os meus, escuros e sérios. - Não sei ser pai. Não sei ser marido. Mas sei cumprir promessas. Se prometi cuidar, vou cuidar.

Um silêncio denso se instalou, quebrado apenas pela voz feliz de Leti ao fundo, narrando suas descobertas: "Olha esse livro de dinossauros!"

- Ela vai se apegar a você - avisei. - Se tudo der certo, em seis meses, o contrato termina.

- E se tudo der errado? - Ele ergueu as sobrancelhas. - Se alguém descobrir nossa farsa, ela pode ser levada. Prefiro que se apegue a mim do que perca o lar.

Meu coração disparou. Havia uma sinceridade crua nas palavras dele; não era compaixão - era uma lógica pragmática que, de algum jeito, incluía sentimentos.

- Dante...

Ele fez um gesto com a mão, interrompendo. - Eu sei. Sem criar expectativas além do combinado. Mas a garota precisa de constância. Vamos ser isso pra ela, mesmo que temporário.

A porta do quarto se abriu e Leti surgiu, trouxe o coelho de pelúcia sem um olho, e ficou entre nós dois.

- Tio Dante, você pode ler pra mim hoje? - Ela estendeu um livro que ele mesmo comprara, "A Viagem do Pinguim Corajoso".

Ele encarou o livro, depois me olhou - como se pedisse permissão. Assenti, sentindo algo quente e indefinido no peito.

- Claro - respondeu. Ele pegou o livro com cuidado. - Mas só se a Luna... digo, sua irmã, também ouvir.

Leti puxou nossas mãos, formando um trio estranho: a menina, a assistente de olhos marejados e o CEO metódico, todos rumo ao quarto violeta.

Enquanto Dante começava a ler, voz sóbria ganhando cadência macia, percebi que aquele momento - nós três enroscados na cama recém-arrumada - valia mais do que qualquer cláusula fria.

"O pinguim corajoso partiu sem saber se encontraria um lar, mas descobriu que às vezes o lar encontra você..."

Leti encostou a cabeça no ombro dele, os cílios pesando. Eu observei, coração apertado entre medo e esperança. Talvez aquilo fosse só o primeiro ato de um teatro; talvez fosse o início de algo real. Mas, por ora, deixei que a história embalasse todos nós.

E, bem ali, na penumbra suave do abajur, tive a estranha certeza de que Dante Navarro - o homem que não se permitia sentir - acabava de dar seu primeiro passo rumo a algo que nenhum contrato no mundo conseguiria limitar.

            
            

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