Para Sofia, eles eram o mundo.
A vida dela era aquele pequeno universo, seguro e previsível. E nesse universo, havia Lucas. Eles cresceram juntos, os quintais das casas um do lado do outro. Brincaram de esconde-esconde, subiram nas mesmas árvores, compartilharam segredos e sonhos. Lucas era ambicioso, seus olhos brilhavam quando falava da capital, de como ele iria estudar, passar em um concurso público e se tornar alguém importante. Sofia o escutava, o coração apertado com a ideia da partida dele, mas feliz por seus sonhos.
"Quando eu voltar, Sofia, eu volto pra te buscar. A gente vai se casar."
Ele disse isso em uma tarde quente, debaixo da mangueira que dividia seus quintais. Sofia, com o coração batendo forte, apenas concordou com a cabeça. Estava prometido.
Um dia, uma velha benzedeira da cidade parou Maria na rua. A mulher tinha olhos fundos e uma voz rouca, que parecia carregar o peso de muitas histórias. Ela segurou o braço de Maria e olhou fixamente para Sofia, que se escondeu atrás da saia da mãe.
"Cuidado com essa menina, Maria. A estrela dela é escura. Tem uma sombra grande seguindo ela."
Maria se arrepiou da cabeça aos pés.
"Vira essa boca pra lá, mulher de Deus! Minha filha é abençoada."
Ela puxou Sofia pela mão e se afastou apressadamente, mas as palavras da velha ficaram ecoando em sua mente. Naquela noite, ela abraçou a filha com uma força incomum, como se quisesse protegê-la de todo o mal do mundo. João, vendo a cena, se aproximou e colocou a mão grande no ombro de Maria.
"Ninguém vai fazer mal à nossa menina. Ninguém."
Os anos passaram. Lucas foi para a capital, como havia sonhado. As cartas dele chegavam toda semana, cheias de novidades sobre a vida na cidade grande e promessas de um futuro juntos. Sofia as lia e relia, guardando cada palavra no coração. Então, a carta mais esperada chegou. Lucas havia sido aprovado em um concurso de alto escalão, para o cargo de promotor. A alegria na casa de Sofia foi imensa. Seus pais comemoraram como se a vitória fosse deles. Lucas estava voltando. A promessa seria cumprida.
Na noite em que a notícia chegou, Maria preparou um jantar especial. A mesa estava posta com a melhor toalha, os tomates da horta brilhavam na salada e o cheiro do assado de João perfumava a casa. Eles comiam em um silêncio feliz, os rostos iluminados pela expectativa.
Foi então que aconteceu.
Sofia se levantou da mesa. Seus movimentos eram calmos, deliberados. Ela foi até a cozinha, pegou a faca grande que seu pai usava para desossar a carne. Seus pais a observaram, sem entender.
"Filha, o que foi?" , perguntou Maria, com um sorriso confuso.
Sofia não respondeu. Ela se aproximou da mãe por trás. Maria ainda sorria quando a lâmina afundada cortou sua garganta. O sangue jorrou, quente e vermelho, manchando a toalha branca. João se levantou em um pulo, o rosto transfigurado pelo horror e pela incredulidade.
"Sofia!"
Foi a única palavra que ele conseguiu dizer antes que ela se virasse para ele. A mesma faca, o mesmo movimento preciso. Ele caiu sobre a mesa, derrubando pratos e copos, o olhar fixo na filha, cheio de uma dor que ia além do ferimento físico.
Sofia ficou parada no meio da sala, a faca ainda na mão, o corpo coberto de sangue. Ela não chorou. Não gritou. Seus olhos estavam vazios, como se a alma tivesse deixado seu corpo.
Os vizinhos, atraídos pelo barulho, foram os primeiros a chegar. A cena que encontraram era de um pesadelo. E no centro de tudo, Sofia, imóvel, silenciosa. A polícia foi chamada. Eles a algemaram e a levaram, sem que ela oferecesse qualquer resistência. A cidade inteira ficou em choque. A menina doce, a filha amada, se tornara um monstro da noite para o dia.
Na delegacia, ela se recusou a falar. As perguntas vinham, agressivas, insistentes, mas Sofia permanecia em silêncio. A notícia se espalhou, e com ela o ódio. "Assassina" , "ingrata" , "demônio" . As palavras eram atiradas contra ela, mas pareciam não atingi-la.
Dias depois, Lucas chegou. Ele não veio sozinho. Ao seu lado, uma mulher alta, elegante, com um ar de superioridade. Era Isabela, uma advogada influente que ele conhecera na capital, sua nova noiva. Lucas, agora um promotor renomado, olhou para Sofia na cela imunda, o rosto marcado pela incompreensão e pela raiva. Ele não via a menina que amava, via a assassina de seus pais.
A tortura começou pouco depois. Os policiais, frustrados com o silêncio dela, queriam uma confissão a qualquer custo. Os tapas eram fortes, os chutes a faziam encolher-se no chão. A dor era aguda, constante, mas nada parecia quebrar o silêncio de Sofia. Ela suportava tudo, o corpo tremendo, a mente longe, presa em uma decisão que ninguém jamais entenderia.
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