Desejo de Amar, Vontade de Partir
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Capítulo 4

Eu estava no quarto, limpando o corte no meu pé, quando meu celular vibrou sobre a cama. Era uma chamada de vídeo de Lucas.

Atendi, esperando mais uma torrente de acusações.

A imagem que apareceu na tela me deixou sem ar. A câmera estava tremendo, instável, mas o que eu vi foi inconfundível. O rosto de Lucas, o cabelo molhado, o vapor subindo ao fundo. Ele estava no chuveiro.

Então, ouvi a voz dela, risonha e próxima. "Lucas, seu bobo, você ligou pra ela sem querer!"

A chamada foi encerrada abruptamente.

Meu celular vibrou novamente. Uma mensagem de áudio dele.

"Opa, desculpa aí. Bati no celular sem querer. A Rafaela tá aqui em casa, o chuveiro dela quebrou e ela veio usar o nosso. A gente tá aproveitando pra adiantar umas coisas do projeto. Ah, e acho que não vou dormir em casa hoje, vamos trabalhar até tarde."

A voz dele era casual, quase entediada, como se estivesse me informando que ia comprar pão na padaria.

Eu ouvi a mensagem uma, duas, cinco vezes. Cada palavra era como um ácido corroendo o que restava do meu coração. A desculpa esfarrapada, a naturalidade com que ele me contava que a estagiária dele estava tomando banho na nossa casa, a decisão de não voltar para dormir.

Uma dor profunda e amarga se instalou no meu peito. Eu me encolhi na cama, abraçando os joelhos, e lembrei do Lucas de antigamente.

O Lucas que me defendeu de valentões na porta da escola. O Lucas que segurou minha mão durante o funeral da minha avó e não me deixou sozinha por um segundo. O Lucas que, ao me pedir em casamento, jurou que eu seria a única mulher da vida dele e que sua maior alegria seria me proteger.

Esse Lucas tinha morrido. Em seu lugar, havia um estranho egoísta e cruel.

O sono não veio. Fiquei olhando para o teto, vendo o fantasma do nosso relacionamento se desfazer diante dos meus olhos.

Por volta das três da manhã, o telefone tocou. Era ele.

"Alô?", atendi, a voz rouca.

"E aí", ele disse, a voz arrastada, provavelmente bêbado. "Ainda tá acordada? Tá bravinha?"

Havia um tom de deboche em sua pergunta, uma tentativa de me provocar, de me fazer explodir para que ele pudesse, mais uma vez, me chamar de louca.

Eu respirei fundo.

"Não, Lucas. Não estou brava."

Houve um silêncio do outro lado. Ele não esperava essa resposta.

"Ah, é? Que bom", ele disse, e o tom dele mudou instantaneamente para a arrogância de sempre. "Então era só mais um dos seus dramas pra chamar a atenção. Você quase me assustou, sabia?"

Aquilo foi o fim. O desprezo na voz dele, a forma como ele reduzia minha dor a um mero "drama". Senti um frio percorrer minha espinha. Era o frio da morte. A morte definitiva do meu amor.

"Preciso desligar, Lucas. Boa noite."

Desliguei antes que ele pudesse responder.

Levantei-me da cama com uma determinação que não sentia há anos. Abri o guarda-roupa e puxei minha mala. Comecei a dobrar minhas roupas, peça por peça, de forma metódica e silenciosa.

Eu estava tirando uma caixa de sapatos do fundo do armário quando a porta do quarto se abriu com um estrondo.

Lucas estava parado ali, o rosto contorcido de raiva. Ele deve ter vindo para casa depois da minha ligação fria.

"O que você pensa que está fazendo?", ele gritou, avançando para mim.

Ele arrancou a caixa da minha mão com tanta violência que me desequilibrei e caí no chão.

"Eu não acredito nisso!", ele berrou, apontando para a caixa. "Você está me roubando? É isso?"

Eu olhei para ele, do chão, sem entender. A caixa continha apenas fotos antigas, cartas, lembranças nossas.

Mas a fúria dele era cega. Ele me olhou com um desprezo tão profundo que me paralisou.

E então ele disse as palavras que selaram seu destino e o meu.

"Você não muda, não é? Sempre com essa mão leve. Desde criança. Igualzinha à sua mãe, uma ladra."

O ar sumiu dos meus pulmões.

Quando eu tinha oito anos, minha mãe, em um momento de desespero financeiro, foi acusada de roubar no supermercado onde trabalhava. Foi um escândalo na nossa cidade pequena. Fui humilhada, chamada de "filha de ladra" na escola por anos.

Lucas sabia disso. Ele era a única pessoa no mundo que sabia o quão profundo era essa ferida.

Naquela época, ele tinha sido meu protetor. Ele brigou com os meninos que me atormentavam. Ele me disse que acreditava em mim e na minha mãe. Ele foi meu porto seguro.

Agora, mais de vinte anos depois, ele estava usando minha maior dor, meu trauma mais profundo, como uma arma para me ferir.

O garoto que um dia me protegeu das palavras cruéis dos outros... acabara de se tornar a pessoa que me desferia o golpe mais cruel de todos.

Naquele instante, olhando para o rosto dele, eu não senti mais dor. Não senti mais amor.

Eu não senti nada.

                         

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