O Retorno de Maria: Sem Arrependimentos
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Capítulo 1

Aos setenta anos, deitada numa cama de hospital fria e solitária, Maria sentia o cheiro da morte se aproximando, um odor rançoso de solidão e arrependimento que impregnava o ar ao seu redor. Seus ossos doíam, um eco constante dos anos de trabalho duro e sacrifício por uma família que a havia descartado como um objeto velho e inútil. Ela tinha dedicado cada gota de sua energia a João, seu marido, e aos filhos que ele lhe dera, mas no final, ficou sem nada.

Ela se lembrava vividamente de cada sacrifício, cada sonho abandonado. A vaga na faculdade de medicina que ela tanto almejava, trocada pela chance de cuidar de João depois que ele sofreu uma queda terrível na montanha. Ela passou noites em claro ao lado de sua cama, limpou suas feridas, o alimentou e o ajudou a se recuperar, enquanto via seu próprio futuro se esvair por entre os dedos. Ele prometeu amá-la para sempre, disse que ela era seu anjo salvador, mas as promessas se tornaram pó com o tempo.

Os filhos, criados com todo o seu amor, cresceram para se tornarem espelhos do egoísmo do pai. Quando ela envelheceu e sua utilidade diminuiu, eles a colocaram neste asilo disfarçado de hospital, com visitas cada vez mais raras e telefonemas cada vez mais curtos. O dinheiro que ela economizou durante toda a vida foi usado por eles para comprar carros novos e casas maiores, enquanto ela contava os centavos para comprar uma fruta.

A traição final veio como um soco no estômago, mesmo para seu coração já cansado. João, seu marido por quase cinquenta anos, aquele a quem ela salvara, apareceu um dia não para visitá-la, mas para pedir o divórcio. Ele segurava a mão de Sofia, sua "alma gêmea", uma mulher que ele conhecia há décadas, a mesma mulher cujo nome ele sussurrava em sonhos febris quando se recuperava da queda. Ele disse que devia a si mesmo ser feliz em seus últimos anos. E a felicidade dele não a incluía.

Os filhos apoiaram o pai. Disseram que ela era amarga, difícil, que merecia ficar sozinha. A dor daquelas palavras foi mais aguda do que qualquer doença física. Naquele momento, deitada na cama, Maria sentiu um ódio profundo e gelado florescer em seu peito, um ódio por João, por Sofia, pelos filhos e, acima de tudo, por si mesma, por sua estupidez e por sua vida desperdiçada.

"Se eu pudesse voltar...", ela sussurrou para o teto manchado, as lágrimas secas em seu rosto enrugado. "Se eu tivesse outra chance, eu nunca... nunca mais cometeria o mesmo erro."

Uma escuridão tomou conta de sua visão, e o som constante do monitor cardíaco ao lado de sua cama se tornou um zumbido distante, até silenciar por completo.

De repente, um grito agudo cortou o silêncio.

"Socorro! Alguém me ajude!"

Maria abriu os olhos, ofegante. O ar estava fresco e cheirava a terra molhada e pinheiros, não ao desinfetante do hospital. Ela estava de pé, suas pernas firmes e fortes, seu corpo jovem e cheio de energia. Ela olhou para as próprias mãos, lisas e sem manchas da idade. O sol da tarde filtrava por entre as árvores, aquecendo sua pele. Ela estava de volta à montanha.

Ela conhecia aquele lugar. Conhecia aquele cheiro, aquele som. Era o dia que mudou sua vida para sempre.

A poucos metros de distância, pendurado precariamente na beira de um pequeno penhasco, estava João. Ele tinha dezenove anos, o rosto pálido de pavor, as mãos escorregando na rocha úmida.

"Maria! Pelo amor de Deus, me ajude! Eu vou cair!"

Na sua vida passada, ela não hesitou. Correu, estendeu a mão, usou toda a sua força para puxá-lo para a segurança, machucando o próprio ombro no processo. Esse ato de heroísmo selou seu destino, acorrentando-a a ele por uma vida inteira de servidão disfarçada de amor. Ela o salvou, e em troca, ele destruiu cada parte dela.

Agora, olhando para ele, o pânico em seus olhos, ela se lembrou da dor, da traição, do abandono. Lembrou-se do rosto dele ao lado de Sofia, da frieza em seus olhos quando pediu o divórcio. Lembrou-se da solidão esmagadora de seus últimos dias.

Uma luta violenta aconteceu dentro dela. A garota ingênua que ela era queria correr e salvá-lo, o instinto de ajudar estava gravado em sua alma. Mas a mulher de setenta anos, a mulher que morreu sozinha e cheia de ódio, gritava em sua mente. Não faça isso. Deixe-o ir. Salve a si mesma.

Ele era o arquiteto de sua miséria. Sem ele, ela teria ido para a faculdade, teria se tornado médica, teria tido uma vida própria.

"Maria! O que você está esperando? Me ajude!" A voz dele estava cheia de uma urgência egoísta, a mesma urgência que ela ouviria por toda a vida.

A hesitação dela se transformou em uma calma fria e determinada. Ela deu um passo para trás, cruzando os braços. Seus olhos encontraram os dele, e pela primeira vez, ela não viu o garoto que amava, mas o monstro que a devoraria.

"Por que eu deveria?", ela perguntou, a voz firme, chocando a si mesma com sua própria força.

O som de passos apressados e vozes se aproximando a tirou de seu transe. Outras pessoas estavam vindo. Ela não precisava fazer nada, apenas se afastar. O destino, desta vez, não estaria em suas mãos. Ela não seria a salvadora nem a culpada. Seria apenas uma espectadora. Uma nova vida estava à sua frente, e ela não a sacrificaria por ele novamente. Nunca mais.

            
            

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