A fumaça era um monstro, me sufocando, me cegando.
Minha garganta parecia lixa. Cada respiração era uma tortura.
Com a memória da vida passada e a determinação recém-descoberta, comecei a me arrastar pelo chão. O carpete quente queimava a pele das minhas mãos e joelhos.
Lembrei-me da planta do apartamento. A varanda do quarto de hóspedes. Era mais longe da origem do fogo. Talvez houvesse uma chance.
O corpo pesava uma tonelada. A fumaça tóxica me deixava tonta, a consciência ia e vinha.
"Não desista", eu dizia a mim mesma, a voz um sussurro inaudível. "Pelo bebê. Você precisa viver."
Eu me arrastei, centímetro por centímetro, passando por móveis em chamas e destroços que caíam. O som do fogo era ensurdecedor, um rugido constante que abafava tudo.
Meu corpo estava no limite. A visão ficou turva, pontos pretos dançavam na minha frente.
Justo quando pensei que ia desmaiar, que meu fim havia chegado, ouvi uma voz diferente, mais próxima.
"Chefe, achei mais uma! Ela está viva!"
Mãos fortes me agarraram, me levantando do chão. Senti o ar um pouco mais limpo no corredor, mas meus pulmões se recusavam a cooperar.
Tudo ficou escuro.
A próxima coisa que senti foi água fria no meu rosto. Muita água.
Abri os olhos com dificuldade. Estava do lado de fora, deitada em uma maca. Paramédicos estavam ao meu redor, colocando uma máscara de oxigênio no meu rosto.
O ar puro e frio entrou nos meus pulmões, e eu tossi violentamente, expelindo fuligem.
Minha visão começou a clarear. Vi Ricardo.
Ele não estava olhando para mim.
Ele estava ao lado de outra maca, onde Patrícia estava sentada, já recebendo os primeiros socorros. Ela tinha alguns arranhões, estava coberta de fuligem, mas parecia consciente e relativamente bem.
"A ambulância chegou!", gritou um dos paramédicos. "Temos duas vítimas!"
Ricardo imediatamente se virou para o paramédico, com uma autoridade que ele adorava exibir. Ele era um influenciador digital famoso, acostumado a dar ordens.
"Levem a Patrícia primeiro", ele ordenou, a voz firme. "Ela inalou muita fumaça, o estado dela é mais grave."
O paramédico olhou para mim, deitada na maca, coberta de queimaduras, mal conseguindo respirar, e depois para Patrícia, que já estava bebendo água de uma garrafa.
"Senhor, mas a sua esposa...", começou o jovem profissional, a confusão clara em seu rosto. "Ela parece estar em uma condição muito pior."
Ricardo o interrompeu com um olhar gélido.
"Você está questionando minha decisão?", ele rosnou. "Eu sou o marido. Eu sei quem precisa de ajuda primeiro. Patrícia é frágil, ela quase morreu lá dentro."
Ele se virou para mim, e pela primeira vez, seus olhos encontraram os meus. Não havia preocupação, não havia amor. Havia apenas desprezo.
"Ela é forte, aguenta", ele disse, mais para o paramédico do que para mim. "É só um pouco de fumaça e alguns arranhões. Não seja dramático."
A humilhação foi pública, brutal.
As pessoas ao redor, outros moradores, curiosos, a equipe de resgate, todos ouviram. Todos viram.
Vi a pena nos olhos do jovem paramédico. Vi o choque nos rostos dos vizinhos.
Ricardo não se importou. Ele segurou a mão de Patrícia, sussurrou algo em seu ouvido, e a acompanhou até a ambulância.
Ele nem olhou para trás.
Fui deixada ali, na minha maca, enquanto a primeira ambulância partia com a "vítima" mais importante.
O frio da noite começou a se infiltrar nos meus ossos, misturando-se com o frio que se instalara no meu coração.
Eu estava sozinha, coberta de fuligem e dor, exposta ao olhar de todos.
E pela primeira vez em muito tempo, eu me senti completamente livre. A dor da traição era o fogo que queimava as últimas correntes que me prendiam a ele.