João, o homem por quem eu tinha largado tudo, estava consertando uma rede de pesca, o corpo forte e bronzeado pelo sol. Vê-lo ali, tão concentrado, me trazia uma sensação de paz. Era a vida que eu tinha construído para nós, tijolo por tijolo, desde o dia em que o encontrei quase morto na praia, sem memória, sem passado. Eu o resgatei, cuidei dele, lhe dei um nome e uma nova vida. E ele me deu Pedro.
A paz foi quebrada pelo som de um motor potente, um som que não pertencia à nossa vila de pescadores. Um carro preto, luxuoso e brilhante como um besouro gigante, parou a poucos metros da minha barraca. A poeira da estrada de terra subiu e se assentou sobre o capô impecável.
Uma mulher de meia-idade, vestida com um tailleur caro que parecia fora de lugar na praia, desceu do carro. Seus sapatos afundavam na areia, e ela fez uma careta de nojo. Seus olhos percorreram o local com desprezo, passando por mim, pela minha barraca, pelo meu filho, até se fixarem em João.
O rosto dela se iluminou com um reconhecimento chocado.
"Ricardo? Meu filho! Você está vivo!"
João largou a rede. Ele olhou para a mulher, a testa franzida em confusão. Ou era o que eu pensava.
"Mãe?"
A palavra saiu da boca dele com uma clareza que me gelou até os ossos. Mãe. Uma palavra que ele nunca tinha dito, uma memória que ele nunca deveria ter. Em seis anos de suposta amnésia, ele nunca se lembrou de nada. Nem do seu nome verdadeiro, Ricardo Vasconcelos, herdeiro de uma das maiores indústrias pesqueiras do país.
A mulher, sua mãe, correu até ele, os sapatos caros esquecidos na areia. Ela o abraçou, chorando.
"Eu sabia! Eu nunca perdi a esperança! Procuramos por você em todos os lugares!"
E então, o mundo que eu conhecia desabou. João, meu João, olhou por cima do ombro da mãe e me viu. Seus olhos não eram os do homem confuso que eu amava. Eram frios, calculistas e distantes. O mesmo olhar que a mãe dele tinha me lançado momentos antes.
Ele se afastou dela e caminhou na minha direção. Por um momento, uma esperança tola floresceu no meu peito. Ele ia me explicar. Ele ia me incluir.
Ele parou na minha frente, o cheiro do perfume caro da mãe dele agora misturado ao cheiro de mar que ele sempre teve.
"Sofia" , ele disse, e seu tom era o de um estranho. "Acabou. Minha memória voltou."
O ar ficou preso nos meus pulmões. As imagens dos últimos seis anos passaram pela minha cabeça como um filme mudo e acelerado. Eu o encontrando na praia, o corpo machucado. Eu limpando suas feridas. Eu desistindo da minha vaga na faculdade de biologia marinha para cuidar dele. Eu abrindo a barraca para nos sustentar, trabalhando de sol a sol. Eu dando à luz ao nosso filho, Pedro, sozinha no pequeno posto de saúde da vila.
Cada sacrifício, cada noite mal dormida, cada gota de suor. Tudo por ele.
Uma sensação estranha e avassaladora tomou conta de mim, uma sensação de déjà vu, como se eu já tivesse vivido essa cena antes. Em um sonho, ou talvez em outra vida, eu gritei, lutei, me agarrei a ele, implorei. E o resultado foi miséria, humilhação e um fim trágico.
Mas desta vez, algo dentro de mim se recusou a seguir esse roteiro. Um novo instinto, frio e claro, tomou o controle.
Eu não vou lutar. Não de novo.
Eu olhei para ele, para o homem que eu achava que conhecia, e vi um completo estranho. Um mentiroso.
"Sua memória voltou?" , perguntei, minha voz surpreendentemente calma. "Que conveniente."
A mãe dele, a senhora Vasconcelos, se aproximou, o desprezo em seu rosto agora evidente.
"O que você quer dizer com isso, sua aproveitadora? Você o manteve aqui, nesta miséria, todos esses anos!"
Ela olhou para mim de cima a baixo, para minhas roupas simples, minhas mãos calejadas, meu rosto queimado de sol.
"É óbvio que você se aproveitou da amnésia dele. Mas agora acabou. Ricardo vai se casar com Isabella, a herdeira da PescaNobre. Um casamento de igual para igual. Você não se encaixa na nossa família."
Cada palavra era uma facada. Mas a dor era diferente agora. Não era a dor do amor perdido, era a dor da humilhação, da injustiça. E por baixo da dor, uma raiva fria começava a se formar.
Eu olhei para João, ou melhor, Ricardo. Ele não me defendeu. Ele não disse uma palavra. Ele apenas ficou ali, confirmando o desprezo da mãe com seu silêncio. Ele nem olhou para Pedro, seu próprio filho, que agora tinha parado de brincar e nos olhava assustado.
Então, a verdade me atingiu com a força de uma onda. A amnésia. A perda de memória. Tudo tinha sido uma farsa. Ele não se esqueceu de mim quando a mãe dele apareceu. Ele se lembrou de quem ele era o tempo todo. Ele viveu uma mentira por seis anos porque era conveniente. E agora, era conveniente me descartar.
Ele me usou. Ele usou minha dedicação, meu corpo, meu trabalho, para viver uma vida simples e sem responsabilidades, longe da família rica que ele claramente queria evitar. E agora que eles o encontraram, ele estava pronto para me jogar fora como lixo.
Uma calma gelada tomou conta de mim. Eu não ia dar a eles o prazer de me ver desmoronar.
"Eu não quero problemas" , eu disse, minha voz firme. "Eu quero uma indenização. E uma passagem de avião. Para o exterior. Para bem longe daqui."
A senhora Vasconcelos pareceu surpresa com a minha frieza. Ela esperava lágrimas e súplicas.
"Quanto?" , ela perguntou, a voz cheia de desdém, como se estivesse comprando meu silêncio.
Eu olhei para João uma última vez. Não havia amor ali, nem arrependimento. Apenas alívio. O alívio de se livrar de um fardo.
Eu disse um número. Um número alto o suficiente para me dar um novo começo, um número que eu sabia que eles podiam pagar.
Ela riu, um som feio e arrogante. "Feito. Considere isso o pagamento por... seus serviços. Pegue o menino e suma da nossa vista."
Meu olhar se endureceu. "O menino fica. Ele é um Vasconcelos, não é? Ele merece a vida de luxo que vocês podem dar a ele. Eu sou só uma pescadora. Inferior."
Usei as palavras dela contra ela. O choque no rosto de João foi quase satisfatório. Ele não esperava isso. Ele achou que eu lutaria por Pedro. Mas eu sabia que, naquele ambiente, com aquele pai e aquela avó, a vida de Pedro seria um inferno se ele ficasse comigo. E, mais importante, eu precisava estar livre. Completamente livre de todas as amarras que me prendiam a essa vida de mentiras.
Desta vez, eu ia escolher a mim mesma.