Cheguei ao hospital ofegante, o cheiro a desinfetante a invadir-me as narinas. Encontrei o corredor do quarto dele, mas parei antes de entrar. A porta estava entreaberta e ouvi risos.
"Aquela fadista idiota, a Raelyn. Aposto que já está a caminho, a chorar."
Era a voz do Afonso, o melhor amigo do Kieran.
"Claro que está," respondeu o Kieran, a sua voz arrastada pela dor, mas cheia de desprezo. "Ela é a minha cadelinha de fado. Nunca me deixaria, não importa o que eu faça."
A minha mão, que estava prestes a empurrar a porta, congelou no ar. Senti uma dor aguda no peito, uma humilhação que me queimava por dentro. Cadelinha de fado. Era assim que ele me via.
Respirei fundo, empurrei a porta e entrei. O sorriso desapareceu do rosto dos amigos dele. O Kieran olhou para mim, os seus olhos azuis frios e calculistas.
"Olha quem chegou," disse o Afonso com um sorriso trocista. "A nossa salvadora."
"Ouve, Raelyn," continuou ele, "o Kieran está magoado e aborrecido. Porque não cantas um fado para nós? Algo sobre como ele é incrível e como tu não és nada sem ele. Isso animá-lo-ia."
Senti o sangue a subir-me ao rosto. A minha garganta secou. Eu era uma fadista, o meu orgulho estava na minha música, na dor e na saudade que ela transmitia. Usá-la para me humilhar era a pior das torturas.
Mas então lembrei-me do meu objetivo. Lembrei-me do Tiago. O casamento tinha de acontecer. Não podia estragar tudo agora.
"Claro," disse eu, a minha voz um sussurro.
Peguei na guitarra imaginária, fechei os olhos para não ver os seus rostos trocistas e comecei a cantar uma melodia improvisada, com letras que me rasgavam a alma a cada palavra. Elogiei a sua coragem, a sua beleza, a sua força, e rebaixei-me a um mero servo.
Quando estava prestes a terminar, o Kieran interrompeu-me com um gesto de enfado.
"Chega. Para com essa porcaria. A tua voz irrita-me."
Ele atirou-me a carteira.
"Vai àquele restaurante no Douro, o que eu gosto. Traz-me leitão assado. Agora."
Saí do quarto como um autómato, as lágrimas a quererem cair, mas eu não as deixei. A humilhação era um preço pequeno a pagar. Atravessei a cidade de volta ao Vale do Douro, uma viagem de quase duas horas, apenas para lhe comprar o jantar.
Quando voltei, o quarto estava escuro e silencioso. Os amigos dele tinham ido embora. Aproximei-me da cama e ouvi-o a murmurar durante o sono.
"Fiona... por favor, volta para mim... Se voltares, eu cancelo o casamento... Eu cancelo tudo..."
O prato de leitão escorregou das minhas mãos e partiu-se no chão. O cheiro da comida misturou-se com o cheiro do desinfetante, criando um aroma nauseante. O meu sangue gelou. A mão que eu tinha cortado num caco de vidro do prato começou a sangrar, mas eu não senti nada.
Nesse momento, uma voz mecânica soou na minha cabeça, fria e sem emoção.
[Progresso da missão: 99%.]
Eu sabia. Eu sempre soube que não era amada. Mas ouvi-lo dizer aquilo, mesmo em sonhos, confirmou a verdade brutal. Eu era apenas uma ferramenta, um peão no seu jogo para reconquistar a Fiona.
Mas não importava. Nada disso importava.
Fechei os olhos e a imagem do Tiago invadiu a minha mente. O seu sorriso, o seu toque, o som da sua risada. Ele era a minha única razão de viver, a única razão pela qual eu estava a suportar este inferno.
"Tiago," sussurrei para o vazio do quarto. "Aguenta mais um pouco. Eu vou trazer-te de volta."