Arte Que Cura Dores
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Capítulo 4

O som do fósforo riscando a caixa ecoou no silêncio do quarto. A pequena chama tremeu na mão de Maria, projetando sombras dançantes nas paredes.

Ela olhou para a pintura da cidade flutuante, para as cores que ela misturou com tanto cuidado, para as linhas que fluíram de seus sonhos para a tela.

Queimar aquilo seria como queimar uma parte de si mesma.

Ela não conseguiu.

Ela apagou o fósforo com um soluço e jogou a caixa no chão.

Ela não participaria do jogo doentio de Sofia.

A porta se abriu horas depois. Era de manhã. Sofia entrou, seguida por Pedro. Ele parecia não ter dormido. Seus olhos estavam vermelhos e fundos.

Sofia olhou para a pintura intacta e para a caixa de fósforos no chão.

"Tsc, tsc. Teimosa" , ela estalou a língua. "Eu avisei, Maria."

Ela se virou para Pedro. "Você vê? Ela se apega aos seus delírios. Ela precisa de um choque de realidade."

Pedro não olhou para Maria. Ele apenas encarou a pintura, seu rosto uma máscara de sofrimento.

Sofia fez um sinal para os dois seguranças que esperavam no corredor. Eles entraram carregando um balde de metal cheio de um líquido escuro e espesso. Piche.

"Se você não vai queimá-la, nós vamos apagá-la" , disse Sofia com uma calma aterrorizante.

O pânico tomou conta de Maria. "Não! Por favor, não!"

Ela correu para a frente da pintura, abrindo os braços para protegê-la.

"Saia da frente, Maria" , disse Sofia.

"Não! Você não vai tocar nela!"

Sofia olhou para Pedro. "Pedro, controle sua esposa."

Pedro finalmente se moveu. Ele caminhou lentamente até Maria e a segurou pelos ombros.

"Maria, por favor" , ele sussurrou, sua voz embargada. "Apenas... deixe."

"Nunca!" , ela gritou, tentando se soltar. "Pedro, é a nossa história! Lembra? Eu te contei sobre esse sonho! Nós conversamos sobre as torres, sobre a cor do céu!"

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Pedro. Ele se lembrava. Ela podia ver em seus olhos que ele se lembrava. Mas ele estava paralisado pelo medo, pela manipulação de Sofia.

"É para o seu bem" , ele repetiu a frase vazia, como um autômato.

Ele a afastou da pintura. Ela lutou, mas estava fraca demais. Os seguranças se adiantaram. Um deles pegou o balde.

"Não! Não! Por favor!" , os gritos de Maria ecoavam pelo quarto.

E então, o segurança virou o balde.

O piche preto e grosso escorreu pela tela, cobrindo a cidade flutuante, as torres graciosas, o céu crepuscular. A beleza foi engolida pela escuridão pegajosa e feia.

Um som gutural de desespero escapou da garganta de Maria. Ela caiu de joelhos, observando sua criação ser profanada, assassinada.

Pedro soltou um soluço audível e se virou, incapaz de assistir.

Sofia sorriu. "Viu só? Não era nada. Apenas tinta sobre tela. E agora, nem isso."

Ela se aproximou de Maria, que estava tremendo no chão, e se agachou ao seu lado.

"Ainda temos mais cinco quadros, Maria. Podemos fazer isso o dia todo, todos os dias. A menos que você esteja pronta para cooperar."

Maria levantou a cabeça, seu rosto manchado de lágrimas, mas seus olhos queimavam com um ódio puro.

"Você nunca vai me quebrar" , ela sibilou.

O sorriso de Sofia vacilou por um segundo. "Veremos."

Ela se levantou e se dirigiu à porta. "Tragam o próximo."

Os seguranças removeram a tela arruinada e trouxeram outra: o deserto de areia prateada.

Eles a colocaram no cavalete. A beleza silenciosa do deserto sob as duas luas parecia zombar da feiura da cena.

"Este era um dos favoritos de Pedro, não era?" , disse Sofia, olhando para seu irmão. "Ele disse que o fazia sentir paz."

Pedro se encolheu, como se tivesse sido atingido.

"Agora" , disse Sofia, sua voz se tornando perigosamente suave. "Temos uma nova convidada hoje. Alguém que pode nos dar uma opinião 'profissional' sobre seu trabalho."

Uma mulher entrou no quarto. Ela era elegante, com um ar de autoridade. Maria a reconheceu de revistas de arte. Era Beatrice Valois, uma crítica de arte renomada e uma antiga rival de negócios da família de Pedro.

Beatrice olhou para a pintura com um ar de desdém.

"Ah, sim. A arte da 'curandeira' " , disse ela, com sarcasmo. "Francamente, é primitivo. A composição é fraca, a paleta de cores é berrante. É o tipo de coisa que uma criança talentosa poderia pintar."

Cada palavra era um insulto calculado.

"Mas" , continuou Beatrice, aproximando-se da tela, "há algo... incomum na textura. Sofia me contou seu pequeno segredo sujo, querida."

Beatrice pegou um lenço do bolso, passou o dedo na superfície da pintura e o olhou. Não havia nada, mas era para o show.

"Sofia me disse que você usa um pigmento... orgânico. Muito pessoal" , disse Beatrice, seus olhos brilhando de malícia.

Sofia então deu o golpe final.

"Ela pinta com o próprio sangue" , disse Sofia em voz alta, para que todos ouvissem. "Ela se corta e mistura o sangue com as tintas. É por isso que ela acredita que eles têm poder. É doentio. É grotesco."

Pedro olhou para Maria, horrorizado. Ele não sabia disso. Era a única parte de seu sacrifício que ela havia mantido em segredo, com medo de assustá-lo.

Agora, Sofia e Beatrice estavam usando isso como a prova final de sua insanidade.

A revelação pairou no ar, mais chocante e mais eficaz do que a destruição da pintura anterior.

Não era apenas sobre arte ser boa ou ruim, valiosa ou inútil.

Era sobre ela ser uma aberração. Uma louca que praticava rituais de sangue.

O horror no rosto de Pedro foi a coisa mais dolorosa que Maria já vira. A última centelha de crença que ele poderia ter por ela foi extinta por aquela revelação terrível.

Beatrice Valois riu, um som agudo e cruel.

"Bem, isso certamente explica a... intensidade. Mas não a torna uma artista. Apenas a torna uma paciente."

Sofia se virou para Maria, seu rosto era a imagem do triunfo.

"E agora, Maria? O que você tem a dizer em sua defesa? O mundo inteiro sabe o que você é. Uma fraude. Uma louca. Ninguém nunca mais vai olhar para sua arte sem sentir nojo."

A armadilha era perfeita. Qualquer coisa que ela dissesse agora soaria como o delírio de uma mulher desequilibrada.

Eles não estavam apenas destruindo suas pinturas. Eles estavam destruindo sua identidade, sua sanidade, sua própria essência.

Eles a haviam encurralado completamente.

                         

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