Ela Salvou Seu Amado Morto
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Capítulo 3

Bianca olhou para a pequena luz vermelha com um misto de raiva e resignação. Era típico. Seus clientes ricos e poderosos nunca confiavam em ninguém. Eles compravam sua expertise, mas sempre mantinham uma coleira invisível, um meio de controle.

O frio no quarto não a incomodava mais. Ela cresceu ouvindo as histórias de sua avó, histórias de lugares onde a tristeza era tão densa que mudava o ar. Ela aprendeu a separar a sugestão da realidade, o medo da verdadeira ameaça. E a verdadeira ameaça ali não era um espírito inquieto. Era o homem frio e calculista que a observava através daquela lente.

Ela sentiu o peso do olhar dele, mesmo à distância. Ele estava esperando. Esperando para vê-la realizar aquele ato grotesco.

Bianca sorriu para si mesma, um sorriso sem humor. Ele teria um show, mas não o que esperava.

Ela abriu sua maleta de trabalho. Dentro, entre os pacotes de ervas e os frascos de óleos, havia um pequeno aparelho que parecia um antigo medalhão de bronze. Dona Sofia o chamava de "o buscador". Para os clientes, era uma ferramenta mística para detectar energias espirituais. Na realidade, era um detector de campo eletromagnético (EMF) que Bianca havia modificado. Simples, mas eficaz.

Ela o ligou. A agulha do medidor saltou imediatamente, apontando para o canto onde a câmera estava escondida. Bianca andou pelo quarto, fingindo "medir a energia" do ambiente. O medidor apitou novamente perto de um abajur na mesa de cabeceira. Um microfone. E de novo, perto de uma estante de livros. Outra câmera.

Três dispositivos de vigilância. Eles realmente queriam um espetáculo completo.

A raiva deu lugar a uma determinação fria. Ela iria desativá-los, mas de uma forma que se encaixasse em seu "ritual".

Ela pegou um pequeno turíbulo de latão e colocou dentro dele uma mistura de ervas. Sálvia, para "purificação", e um composto especial de sua própria criação que, quando queimado, liberava uma fumaça densa e oleosa, perfeita para obscurecer lentes de câmeras. Além disso, continha resinas que, em alta concentração, podiam interferir em dispositivos eletrônicos simples.

Ela acendeu as ervas. A fumaça subiu, espessa e aromática, enchendo o quarto rapidamente. Ela caminhou em círculos, entoando palavras em um dialeto antigo que sua avó lhe ensinara, passando o turíbulo diretamente sob cada dispositivo escondido. A fumaça se agarrou às lentes, e o EMF portátil confirmou que os microfones começaram a emitir um chiado baixo, sobrecarregados pela interferência.

Com a vigilância neutralizada, ela podia começar o verdadeiro trabalho.

Primeiro, ela precisava se preparar. Tirou do fundo de sua maleta um longo vestido preto, de tecido pesado, quase como um hábito. Era parte do teatro, mas também a ajudava a entrar no estado de espírito necessário: focada, desapegada, profissional.

Vestida, ela se aproximou do contorno vago no chão, onde o corpo de Rafael esteve. O protocolo agora exigia que ela "se comunicasse" com o falecido. Era uma parte crucial do serviço, onde ela falava com o espaço vazio, oferecendo palavras de conforto e passagem. Geralmente, era um monólogo que ela recitava de cor.

Mas desta vez era diferente. Não era um estranho. Era Rafa.

Ela se ajoelhou, o tecido preto se espalhando ao seu redor. A fumaça ainda pairava no ar, criando uma atmosfera irreal.

"Rafa", ela sussurrou, a voz embargada. "O que você fez? O que aconteceu com você? Você mentiu para mim. Você mentiu sobre tudo."

As palavras saíram antes que ela pudesse detê-las. Não era o ritual. Era seu coração partido falando.

"Eu te amei, seu idiota. E você era o filho de um bilionário brincando de ser pobre. Por quê?"

Ela fechou os olhos, tentando conter a dor. Mas então, algo a trouxe de volta ao presente. Ela precisava realizar o próximo passo do ritual: a purificação do leito de morte.

Ela pegou um pequeno sino de prata de sua maleta. De acordo com a tradição, o som do sino ajudaria a guiar o espírito. Ela o tocou. O som deveria ser claro e puro, mas saiu abafado, como se algo o estivesse impedindo.

Ela tentou de novo. O mesmo resultado.

Um calafrio percorreu sua espinha. Isso era incomum. Em todos os seus anos de trabalho, seus instrumentos nunca haviam falhado. Era superstição, ela disse a si mesma. Era a carga emocional da situação afetando sua percepção.

Ela deixou o sino de lado e pegou um frasco de óleo de sândalo. O plano era ungir os quatro cantos da cama. Mas quando ela se aproximou, a mão tremia tanto que o frasco escorregou e caiu no chão, rolando para debaixo da cama.

"Droga!", ela praguejou baixinho.

Ela se ajoelhou para pegar o frasco. E foi então que viu. Algo que a polícia, em sua pressa, não viu.

Debaixo da cama, na madeira do estrado, havia arranhões. Marcas de unhas. Longas, profundas, desesperadas.

Não eram marcas de alguém que estava desistindo da vida. Eram as marcas de alguém que estava lutando por ela.

O coração de Bianca disparou. A história do suicídio estava se desfazendo diante de seus olhos. A corda jogada de lado, o cheiro químico, as marcas de luta...

Ela olhou novamente para a mancha escura no tapete. A polícia disse que ele se enforcou e caiu ali. Mas as marcas de unhas...

Ela se levantou, a mente a mil por hora. O trabalho tinha acabado de ficar infinitamente mais complicado. O preço que ela cobrou de repente parecia pouco. Meio milhão de reais parecia pouco para o que ela estava prestes a descobrir.

Ela precisava terminar o ritual básico antes de fazer qualquer outra coisa. Ignorando os sinais estranhos, ela pegou outro frasco de óleo e ungiu a cama. Então, ela se virou para a parte final e mais temida da noite.

O refrigerador.

Ela o abriu. Dentro, o recipiente de metal estava frio ao toque. Ela respirou fundo, preparando-se para o ato que a faria cúmplice daquela loucura familiar.

Mas antes que pudesse abrir o recipiente, seus olhos foram atraídos para algo na mesa de cabeceira de Rafael. Era um porta-retratos, virado para baixo. Com o coração na boca, ela o pegou e o virou.

Era uma foto. Dela e de Rafa. Tirada em um parque de diversões, dois anos atrás. Eles estavam sorrindo, felizes, alheios ao mundo. Ele não tinha jogado fora. Ele a manteve.

Atrás da foto, uma pequena inscrição, com a caligrafia dele: "Minha Bianca. Minha única verdade."

A fachada de Bianca se quebrou. As lágrimas caíram livremente. A dor e a confusão a dominaram. Quem era aquele homem? O mentiroso rico ou o segurança que a amava?

Foi então que ela sentiu.

Não era o frio de antes. Era outra coisa. Uma vibração sutil no ar. Uma sensação de... presença.

Ela se virou lentamente, olhando para a mancha escura no tapete.

E no meio da fumaça densa, ela viu.

O corpo.

Não, não o corpo. O corpo fora levado. Era uma impressão. Uma silhueta na fumaça.

E estava se movendo.

            
            

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