Ignorei o aviso. Lá em cima, o meu padrasto, o pai dele, celebrava a colheita com a minha mãe e dezenas de convidados. Aqui em baixo, nos braços do meu meio-irmão, eu celebrava a minha própria colheita, uma de paixão que durava há seis anos.
"Deixa-os notar," respondi, puxando-o para mais perto.
Ele riu-se, um som baixo e rouco que me fez arrepiar. "És tão imprudente, minha fadista. É por isso que te amo."
Ele beijou-me de novo, com uma urgência que me fez esquecer tudo o resto. O mundo exterior, com as suas regras e os seus julgamentos, desapareceu. Só existíamos nós os dois.
"Jacob," disse eu, entre beijos, "quando é que vamos fugir? Disseste que íamos deixar tudo isto para trás."
Ele afastou-se ligeiramente, os seus olhos azuis a brilhar na penumbra. "Em breve, meu amor. Muito em breve. Vamos para um lugar onde ninguém nos conheça, onde possas cantar o teu fado só para mim."
As suas palavras eram o meu evangelho. Eu acreditava em cada uma delas. A ideia de uma vida com ele, longe da sombra da família Gordon, era o meu único sonho.
"Temos de voltar," disse ele, ajeitando a minha roupa. "O meu pai vai fazer o discurso dele. E tu, a estrela da noite, tens de estar lá."
Assenti, a realidade a regressar lentamente. Eu era Raelyn Hayes, a enteada, a cantora de fado que a família Gordon exibia como um troféu exótico.
"Vai tu primeiro," disse eu. "Eu vou daqui a pouco."
Ele deu-me um último beijo rápido e desapareceu pela porta da adega. Fiquei ali por um momento, a saborear o gosto dele nos meus lábios, o coração a bater descontroladamente.
Quando finalmente saí da quinta, a noite estava escura. A estrada sinuosa que descia o vale estava mal iluminada. Comecei a caminhar, a pensar no nosso futuro, na nossa fuga.
Foi então que vi os faróis. Um carro a alta velocidade, vindo na minha direção. Não tive tempo para reagir.
O impacto atirou-me para o ar. Senti uma dor aguda e lancinante nas pernas, depois em todo o corpo. A última coisa que ouvi antes de a escuridão me engolir foi o som de pneus a chiar, a afastar-se.
Flutuei numa névoa de dor e confusão. Vozes chegavam-me, distorcidas, como se viessem de debaixo de água.
"...o plano correu na perfeição. O condutor já está a caminho de Espanha. Ninguém o vai encontrar."
Era a voz do Jacob. Fria, calculista. Diferente da voz do homem que me amava na adega.
Outra voz, a de um amigo dele, riu-se. "És um génio do mal, Jacob. Aleijá-la para que ela nunca mais possa cantar fado de pé. Vingança poética."
"Ela e a mãe dela tiraram-me tudo," disse o Jacob, e o veneno nas suas palavras queimou-me mais do que qualquer ferida. "A minha mãe morreu por causa daquela mulher oportunista. E a filha, a pequena cantora, vai pagar por isso. Seis anos a fingir que a amava, a aturar a sua devoção patética... valeu a pena só por este momento. Agora, o caminho está livre para a Vanessa."
Vanessa. O seu amor de infância. A mulher que ele realmente amava.
A dor da traição foi mil vezes pior do que a dor física. Os seis anos que eu julgava serem a nossa história de amor eram, na verdade, o seu longo e meticuloso plano de vingança. A minha paixão, o meu fado, a minha identidade... ele queria destruir tudo.
Lembrei-me do primeiro dia em que o vi, quando a minha mãe, a sua nova governanta, me levou para a mansão dos Gordon. Eu tinha dezasseis anos, ele dezoito. Fiquei fascinada por ele, pelo seu charme, pela sua aura de poder. Ele pareceu notar-me também. Começou com olhares secretos, depois bilhetes, encontros furtivos. Ele disse que eu era a sua luz, a sua alma. E eu, uma rapariga humilde de Alfama, acreditei.
Quando acordei, estava num quarto de hospital. A luz branca feria-me os olhos. O Jacob estava sentado ao lado da minha cama, a segurar a minha mão. O seu rosto estava contorcido numa máscara de preocupação.
"Raelyn, meu amor. Graças a Deus que acordaste. Tive tanto medo."
O seu toque queimava-me. O seu rosto era repugnante. Tive de usar toda a minha força para não gritar.
Ele continuou a sua atuação. "Os médicos... eles disseram que as tuas pernas... as lesões são muito graves."
Eu sabia a verdade. Eu sabia que aqueles médicos tinham sido pagos por ele.
A minha mãe entrou no quarto, o rosto banhado em lágrimas. "Minha filha, minha querida filha."
Ela abraçou-me, e eu desabei nos seus braços, o meu corpo a tremer com soluços silenciosos. O Jacob observava, o ator perfeito a desempenhar o seu papel.
Mais tarde, quando o Jacob saiu para falar com os médicos, a minha mãe aproximou-se. "Raelyn, há uma esperança," sussurrou ela, os olhos a brilhar com uma luz desesperada. "Lembrei-me do Hugo. Hugo Neame. O teu amigo de infância."
Hugo. O nome era uma memória distante, de verões em Lisboa, de promessas infantis.
"A família dele emigrou para o Brasil, lembras-te? Ele é agora um dos melhores cirurgiões ortopédicos do mundo, especialista em medicina desportiva. Eu... eu contactei-o. Ele viu os teus exames. Ele disse que pode ajudar-te. Ele disse que pode fazer-te andar de novo."
Uma pequena chama de esperança acendeu-se no meu peito escuro. Brasil. Longe do Jacob. Longe desta mentira.
"Sim, mãe," sussurrei. "Vamos para o Brasil."