Sufocada Pelo Amor Materno
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Capítulo 3

A vida na faculdade se tornou uma extensão do inferno que eu já conhecia, só que em um cenário diferente. Dividíamos o mesmo dormitório, o mesmo horário de aulas, o mesmo círculo de conhecidos. Helena ligava todas as noites, uma chamada de conferência, para garantir que a "justiça" continuava sendo servida.

Mas algo em Clara havia mudado. A dependência que ela sempre teve de mim se transformou em uma espécie de direito adquirido. Ela não apenas esperava que eu a ajudasse, ela exigia.

Certa noite, poucas semanas antes das provas finais do primeiro semestre, ela se aproximou da minha cama com uma expressão que eu conhecia muito bem: a mistura de falsa inocência e manipulação.

"Sofia, eu preciso de um favor", ela disse, em voz baixa.

Eu continuei a esboçar em meu caderno, sem levantar os olhos. "O que foi agora, Clara?"

"A prova de História da Arte... é muito difícil. Eu não vou conseguir passar."

"Então estude. Eu posso te ajudar a estudar."

Ela balançou a cabeça. "Não dá tempo. Eu estava pensando... você é tão boa nisso. Você poderia... sabe... fazer a prova por mim?"

Eu parei de desenhar. O lápis ficou suspenso sobre o papel. Eu a encarei, incrédula. Não se tratava mais de compartilhar notas ou desenhos. Era fraude. Um crime acadêmico.

"Você está louca?", eu sussurrei, chocada. "Clara, isso pode nos expulsar da faculdade."

"Ninguém vai descobrir!", ela insistiu, seus olhos brilhando com uma urgência desesperada. "Somos idênticas! É o plano perfeito. Pensa bem, se eu reprovar, a mamãe vai ficar furiosa. Ela vai dizer que é injusto eu ficar para trás. Vai sobrar pra você de qualquer jeito."

E foi aí que eu entendi. A "justiça" de Helena não era mais apenas uma ferramenta de controle para a minha mãe. Tinha se tornado a arma de Clara. Ela aprendeu a usar a obsessão da nossa mãe a seu favor, sabendo que qualquer desequilíbrio entre nós seria "corrigido" às minhas custas.

Meu coração afundou. A minha própria irmã, a pessoa que eu fui forçada a proteger a vida inteira, estava me chantageando com a mesma lógica distorcida que nos aprisionava.

"É só uma prova, Sofia", ela continuou, vendo minha hesitação. "Pelo bem da paz. Pelo bem da mamãe."

Eu me senti encurralada. Se eu recusasse e ela reprovasse, Helena tornaria minha vida um inferno, me culpando por não "apoiar" minha irmã. Se eu aceitasse, estaria me afundando ainda mais nesse poço de mentiras, perdendo mais um pedaço de mim mesma.

Naquela noite, eu não dormi. Fiquei olhando para o teto, o peso da decisão me esmagando. O medo da fúria de Helena era maior do que o medo de ser pega. A sobrevivência, mais uma vez, falou mais alto que a integridade.

Na manhã da prova, eu me olhei no espelho. Vesti as roupas de Clara, prendi meu cabelo do jeito que ela prendia. Eu não estava me vendo ali. Era um fantasma, uma cópia.

Entrei na sala de provas, meu coração martelando contra as costelas. Sentei no lugar designado para Clara. Ninguém notou. Respondi a prova inteira em menos de uma hora, o conhecimento fluindo facilmente, mas cada palavra que eu escrevia parecia suja.

Quando saí, encontrei Clara me esperando do lado de fora, roendo as unhas.

"E aí?", ela perguntou, ansiosa.

"Eu fiz", respondi, a voz vazia. Entreguei a ela a caneta que usei. "Nunca mais me peça isso."

Ela sorriu, aliviada, ignorando completamente meu tom. "Você é a melhor, Sofia!"

Algumas semanas depois, as notas saíram. Como esperado, "Clara" tirou uma das notas mais altas da turma. Eu, em minha própria prova, deliberadamente errei o suficiente para que ficássemos com notas parecidas.

Naquela noite, Helena ligou, exultante.

"Meninas, estou tão orgulhosa! Suas notas foram quase idênticas! Isso sim é equilíbrio! Isso é justiça!", ela disse, sua voz cheia de satisfação. "Para comemorar, depositei um dinheiro extra na conta de vocês. Comprem algo bonito, vocês duas merecem."

O som da sua voz me deu náuseas. Ela estava elogiando uma mentira, celebrando a minha anulação. O dinheiro na minha conta parecia sangue.

Aquele foi o ponto de ruptura. A dor que eu vinha suprimindo por anos transbordou. Não era mais uma ansiedade silenciosa, era um grito mudo que precisava sair.

Eu precisava que alguém visse. Que Helena visse.

Naquela noite, enquanto Clara dormia, eu fui ao banheiro. Peguei a pequena lâmina do meu apontador de lápis. Era pequena, quase inofensiva.

Eu olhei para o meu antebraço esquerdo. Um lugar que ninguém veria, coberto por mangas compridas. Com a mão tremendo, eu fiz um corte. Não era fundo, mas o sangue brotou, uma linha vermelha e viva contra a minha pele pálida.

A dor física foi um alívio estranho para a dor mental. Era real. Era visível. Era uma prova.

Eu fiz outro. E outro. Pequenos cortes paralelos, um mapa da minha agonia. Não era uma tentativa de morrer, era uma tentativa desesperada de ser vista. De fazer minha dor interna se tornar externa, inegável.

No fim de semana seguinte, em casa, eu deliberadamente usei uma blusa de mangas curtas durante o jantar. Eu posicionei meu braço na mesa de forma que os cortes, agora pequenas cicatrizes rosadas, ficassem visíveis sob a luz.

Helena notou. Eu a vi olhar, franzir a testa, e depois desviar o olhar, como se tivesse visto algo desagradável.

"Sofia, cubra esse braço", ela disse, friamente. "É falta de apetite."

Nenhuma pergunta. Nenhuma preocupação. Nenhuma menção ao que aquelas marcas significavam. Minha dor, mais uma vez, era um inconveniente, uma mancha em sua imagem de família perfeita.

"Mãe...", eu comecei, a voz falhando. "Eu não estou bem."

"Ninguém está perfeitamente bem o tempo todo", ela respondeu, cortando um pedaço de seu bife. "Clara parece ótima. Talvez você devesse aprender com ela a ser mais resiliente."

A ironia era tão cruel que quase me fez rir. Aprender a ser resiliente com a pessoa que estava me destruindo.

Meu último recurso falhou. Meu grito de ajuda foi recebido com indiferença.

Pouco tempo depois, tive um colapso na faculdade. Um ataque de pânico tão severo que a enfermaria da universidade teve que chamar uma ambulância. No hospital, me encaminharam para uma avaliação psiquiátrica completa.

Desta vez, o diagnóstico foi mais severo: transtorno de personalidade borderline, com episódios depressivos maiores e automutilação. O psiquiatra foi claro.

"Sofia, muito do que você está passando parece estar ligado a um ambiente familiar de invalidação crônica. Sua necessidade de agradar e se anular para manter uma 'paz' artificial está literalmente te adoecendo."

Ali, sob as luzes fluorescentes do consultório, eu finalmente entendi. Minha doença não era uma fraqueza minha. Era uma ferida. Uma ferida infligida dia após dia, ano após ano, pela "justiça" da minha mãe.

            
            

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