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Tudo aconteceu porque eu dei valor àquela ideia absurda: a ilusão de que eu podia entrar e sair quando quisesse, que eu era madura o bastante pra provar um pouco do gosto dele, me divertir e sair de cena intacta. Que estupidez a minha - achar que dava pra brincar com fogo só até onde fosse confortável. Que dava pra sentar numa mesa, aceitar um vinho, engolir uma mentira bem contada e ainda sair ilesa, como se eu fosse imune.
Naquela noite, eu jurei pra mim mesma que estava no controle. Que não tinha risco, que não tinha nada de mais. Um jantar caro, uma conversa boa, um sorriso torto. Era só isso - eu repetia na cabeça. E bastaria levantar da mesa, agradecer, chamar meu carro e ir embora.
Mas não foi o que eu fiz. Porque o problema de achar que se tem controle é esquecer que o outro lado também sabe jogar. E Fábio... Fábio sempre soube exatamente até onde me deixar acreditar que eu mandava em alguma coisa.
Se alguém me perguntasse hoje qual foi o exato segundo em que eu deveria ter levantado da mesa e ido embora, eu saberia responder: quando o garçom trouxe a segunda taça de vinho.
Não que tenha sido o vinho em si - eu sou boa de taça, melhor ainda de limites. O problema foi o jeito como ele segurou a minha mão quando pediu outra rodada. Assim, de leve, dedo por cima do meu, como quem sela um acordo silencioso.
Advogada que sou, eu devia saber que aquele toque era um contrato verbal de encrenca. E que, diferente dos contratos que eu reviso até a vírgula, esse eu ia assinar de olhos fechados.
Eu lembro da cena inteira como se estivesse passando num telão. Eu, sentada num restaurante italiano metido a chique, no Cambuí. Fábio do outro lado, blazer jogado nas costas da cadeira, camisa branca com o primeiro botão aberto - detalhe simples que, somado ao sorriso, derrubava qualquer defesa.
Ele começou falando de trabalho. "Conta mais do teu escritório, Marília. Você sempre quis ser advogada?"
Eu, toda orgulhosa, contando minha história de garota esforçada: filha de professora, pai bancário, bolsista de colégio particular, OAB aprovada de primeira, sócia júnior antes dos trinta. Orgulho da família Marques, a que sempre soube o que queria.
Ele escutava tudo com aquele olhar de quem parece interessado em cada palavra. Mexia o vinho na taça, encostava o queixo na mão, sorria nos momentos certos. Um público perfeito.
Dez minutos de papo e eu já tinha esquecido o aviso mental que dizia: "Homem charmoso demais = dor de cabeça."
Aí veio a primeira mentira.
Ele disse assim, do nada:
- Sabe o que eu mais admiro em você? - perguntou, inclinando o corpo pra frente, como se fosse me contar um segredo.
- O quê?
- Você não parece do tipo que perde tempo com joguinho.
Olhei pra ele, rindo:
- Joguinho?
- É. Gente que faz charme. Que enrola. Você é direta, Marília. Eu adoro isso.
A-ha. Claro. O rei do charme me elogiando por não fazer charme.
Devia ter percebido. Devia ter desconfiado de quem elogia muito cedo, de quem parece te entender rápido demais. É sempre isca.
Mas eu tava ocupada demais sorrindo de volta. E aceitando a segunda taça de vinho.
Veio a comida. Um ravioli artesanal que eu nem senti o gosto direito. Entre uma garfada e outra, ele começou a soltar as frases que, hoje, soariam como alarmes de incêndio.
- "Eu me separei faz um tempo."
- "Tô focado no trabalho agora."
- "Relacionamentos são complicados, né? Mas com você... não sei, tudo parece mais leve."
Repare bem nessa última. "Tudo parece mais leve." Tradução: "Vou te fazer achar que isso aqui é especial, mas sem prometer nada."
Na hora eu só ri, balançando a taça. Não porque acreditei, mas porque quis acreditar. É diferente, entende? Às vezes a gente não cai na mentira - a gente pula nela de cabeça.
Quando o prato acabou, o garçom trouxe a conta. Fábio fez questão de pagar tudo. Eu ainda tentei dividir, como uma mulher moderna, independente, controladora faz questão de fazer - pra não dever nada a homem nenhum.
Ele negou com um gesto, abriu a carteira, passou o cartão de metal que brilhava mais que o sorriso dele.
- Hoje é por minha conta -piscou.
- E amanhã? -eu disse, meio brincando.
Ele sorriu, com aquele canto de boca torto:
- Amanhã você que paga. E depois de amanhã também.
Pronto. Contrato assinado em letra miúda: eu voltaria. Várias vezes.
Do restaurante até o carro, Campinas parecia conspirar a favor. Uma noite quente, vento morno, aquelas luzes de poste que deixam tudo com cara de filme romântico ruim. A rua quase vazia.
Fábio andava do meu lado, mão no bolso, outra mão encostando de leve no meu cotovelo quando eu tropeçava nos paralelepípedos.
Parou do lado do carro dele, um SUV preto que devia valer mais que meu apartamento alugado. Abriu a porta do passageiro como quem abre a porta de carruagem.
Eu devia ter dito: "Obrigada pelo jantar, foi ótimo, boa noite."
Devia ter entrado no meu Uber, voltado pro meu edredom, pro meu Cabernet, pro meu mundo seguro de mulher que não se mete em confusão.
Mas fiquei parada ali, encostada na lateral fria do carro, sentindo a pontinha dos dedos dele roçar meu braço.
E ele, claro, percebeu. O homem tem faro pra hesitação.
- Tá tudo bem? -perguntou, voz baixa.
- Tá -menti.
- Quer que eu te leve em casa? -outra isca.
- Não precisa, eu pego um carro -ainda tentei, fraca que só.
Ele riu. Um riso curto, suave, que eu já sabia de cor.
- Então entra. Eu te deixo na porta. Prometo me comportar.
Eu ri de volta, como quem acredita.
- Você? Se comportar?
- Eu sempre me comporto -e me deu aquele olhar, que desmonta qualquer argumento.
Entrei.
Dentro do carro, o cheiro dele tomava conta de tudo: couro, perfume, a música baixa no som - uma playlist genérica de jazz moderno, que eu aposto que ele nem ouve quando tá sozinho. Mas funcionava. Funciona até hoje.
Ele dirigia devagar, uma mão no volante, outra descansando perto da marcha. Perto demais da minha perna. Eu sentia o calor dos dedos dele sem ele nem encostar. E queria que encostasse.
No meio do caminho, perguntou meu endereço - como se não fosse lembrar de cor depois.
- Cambuí mesmo? -confirmou.
- Cambuí mesmo. Perto de tudo, longe de confusão -eu disse, como se fosse uma ironia privada. Longe de confusão, imagina.
Ele deu uma risada curta, virou uma esquina, parou num semáforo. E ali, no sinal fechado, virou o rosto pra mim. Um segundo que durou uma eternidade.
- Posso te falar uma coisa? - perguntou.
- Pode.
- Faz tempo que eu não tenho vontade de ficar perto de alguém assim.
Se eu fosse esperta, teria respondido com piada.
Se eu fosse forte, teria dito "não se acostuma".
Mas eu só respirei fundo. E ele se inclinou. Beijou meu queixo, depois minha boca. Devagar, quase pedindo licença.
E eu deixei.
Aquele beijo durou mais que o semáforo fechado. O carro parado, o motor ligado, minha consciência desligada. Quando me dei conta, a buzina de outro carro me acordou. Ele riu contra minha boca. Eu ri também.
Dois adultos, maduros, rindo de uma palhaçada que sabíamos muito bem onde ia dar.
Chegamos no meu prédio. Ele encostou na frente, sem pressa de desligar o carro. Eu, com a mão na maçaneta, toda racional, toda "mulher que sabe a hora de parar".
Ele segurou meu pulso.
- Posso subir? -perguntou, descarado.
Eu devia ter dito não.
Eu devia ter dito "Hoje não."
Mas minhas defesas estavam na calçada, fumando cigarro, rindo da minha cara.
- Pode -saiu da minha boca antes que eu conseguisse engolir.
Subimos. Elevador silencioso. A respiração dele atrás de mim, quente na minha nuca. Eu nem olhava pra câmera do elevador - paranoia de advogada. Se alguém revisasse aquelas imagens... bom, já era.
Dentro do meu apartamento, ele elogiou minha estante de vinhos, minha playlist de jazz - a mesma que eu ouvia sozinha enquanto trabalhava madrugada adentro.
Abriu uma garrafa sem pedir. Serviu duas taças. Brindou comigo como se a noite fosse casual, leve, sem segredos.
Dali pra cama foram três passos e nenhuma resistência.
Ele era tudo o que prometia: gentil, preciso, atento. Cada toque, cada beijo, cada frase sussurrada como se fosse promessa de eternidade.
E eu... eu me convenci de que não tinha nada de errado. "Separado." Foi o que ele disse. "Faz tempo." Foi o que eu acreditei.
Quando acordei, já era quase de manhã. Ele ainda estava ali, dormindo do meu lado, o braço pesado sobre minha cintura.
Fiquei olhando o rosto dele. Pensei: "Será que é real? Será que é isso mesmo? Será que não tô me enganando?"
Ele abriu os olhos, sorriu daquele jeito torto, beijou minha testa e sussurrou:
- Vou resolver minha vida, tá? Prometo.
Prometeu.
Eu acreditei.
E foi assim que começou: um jantar caro, uma mentira bem contada, um contrato invisível assinado com beijo - e a Marília Marques, toda certinha, virou a outra.
Primeira mentira engolida. Primeira queda de muitas.
No fundo, eu sabia.
Mas entre saber e fazer alguma coisa a respeito... tem uma cama quente, um sorriso torto, um homem que diz "te quero" sem abrir mão de nada.
E eu, besta, dizendo sim.