/0/16408/coverbig.jpg?v=b6850b2d665db20cf94bd1ae81b5cf3c)
O que eu mais odeio - mais do que essa espera, mais do que essa culpa - é o que acontece dentro da minha cabeça quando ele some. É como se meu cérebro fosse dividido em duas vozes que não param de gritar uma com a outra.
De um lado, a pergunta que me devora: Será que fui eu? Será que falei algo errado? Será que exigi demais? Será que reclamei no momento errado? Será que fiz aquela cara que ele odeia? E eu fico repassando cada frase, cada vírgula, cada suspiro, como se fosse possível achar a falha que explique o silêncio.
Do outro lado, o medo que me congela: E se ele nunca mais voltar? E se essa foi a última mensagem? E se, amanhã, eu acordar e perceber que tudo acabou sem nem ter chance de perguntar por quê? Porque ele não explica, ele não se justifica - ele só some, como se eu fosse descartável, um detalhe fácil de apagar.
É aí que eu me vejo mais fraca: quando entendo que, entre ter certeza de que perdi e viver nessa dúvida, eu prefiro a dúvida. Porque a dúvida me alimenta. É uma esperança torta - mas ainda é esperança. E enquanto ela existir, eu fico. Eu espero. Eu me torturo, perguntando se fui eu ou se foi ele - e no fundo sabendo que, no final, nunca vai ser só culpa dele.
Ele reaparece numa terça-feira qualquer. Assim, do nada. Como se não tivesse me deixado falando sozinha no WhatsApp por uma semana inteira. Como se eu não tivesse apagado e reescrito umas vinte mensagens que nunca mandei.
"Sumido?" -eu ensaiei.
"Tá vivo?" -digitei.
"Você é um babaca" -quase enviei.
Mas quem sou eu? Eu sou Marília Marques. Mulher controlada. Mulher de classe. Mulher que não surta por homem. Mulher que não... Ok, você já entendeu.
Enfim. Ele some, eu quase tenho um colapso, mas não mando nada. Porque tenho dignidade. Dignidade seletiva, claro.
Então, terça, vinte horas e 47 minutos, meu celular vibra. Mensagem de quem? Fábio Cruz. O ressuscitado.
"Passo aí em 30 minutos. Posso?"
Posso. Ele pergunta posso, como se eu fosse negar. Como se eu já não estivesse de camisola de algodão, cabelo preso num coque torto e rímel borrado do dia inteiro de trabalho.
Poder, podia. Mas não devia.
Devia dizer "não". Devia dizer "vá pra puta que pariu". Devia dizer "procure sua esposa, seu cretino mentiroso". Mas eu só digito:
"Pode."
Pronto. Entrego minha alma, minha reputação e minha dignidade num "pode". Tudo em quatro letras.
Ele chega 28 minutos depois. Ainda tive tempo de escovar o dente, retocar o batom, trocar a camisola por um vestido que finjo que "estava usando à toa".
Ridícula.
Quando abro a porta, ele tá lá. Camisa social meio amarrotada, gravata frouxa, aquele sorriso de quem sabe que sou o erro favorito dele - e vice-versa.
- Saudades de você -ele solta, sem vergonha nenhuma, me olhando como se eu fosse o feriado prolongado da vida dele.
Eu rio. Sabe aquele riso de quem quer bater e beijar ao mesmo tempo? Pois é.
- Você some, depois aparece assim, com essa cara de quem não fez nada -retruco.
Ele encosta na porta, me puxa pela cintura. O perfume dele invade minha sala. E minha consciência vai embora pela janela.
- Foi uma semana difícil -ele diz, voz baixa, lábios encostando no meu pescoço-. Reuniões, viagem, cliente... E eu, morrendo de saudade sua.
Eu deveria perguntar "E a Rebeca?". Eu deveria gritar "Mentiroso!". Mas o cheiro, a boca, a mão na minha nuca.
Pronto. Acabou Marília Marques, advogada sênior, dona de si. Vira só pele, calor e arrependimento.
A gente tropeça até o sofá. Ele me beija como se estivesse faminto. Como se eu fosse a salvação dele. E talvez eu seja. Talvez eu goste de ser.
As roupas somem, minhas certezas também.
No final, estamos jogados no sofá, nus, minha perna por cima dele, taça de vinho numa mão, celular na outra. Ele faz carinho na minha coxa. Eu finjo que não estou morrendo de vontade de perguntar: "Você dorme com ela?"
Claro que dorme. Óbvio que dorme. O problema sou eu que finjo que não sei.
- Senti sua falta -ele murmura, como se fosse poesia.
- É? -eu pergunto, sarcástica-. Então por que sumiu?
Ele suspira. Fecha os olhos. Larga aquela desculpa linda, treinada.
- Marília, meu mundo tá um caos agora. O trabalho, minha família, tudo. Eu não queria te envolver nos meus problemas. Você merece coisa boa.
Aí tá. A frase. A isca. Você merece coisa boa. Traduzindo: Eu sou lixo, mas vou te dar migalhas enquanto não decido virar gente.
E eu caio. Pior: eu sorrio.
Fábio sempre faz isso. Me seduz, me faz acreditar. Ele tem esse dom: fala de um jeito que parece confissão, mas é só controle.
Eu rio. Pego minha taça, brinco com o vinho.
- Quer saber? A gente devia fazer um contrato.
Ele arqueia uma sobrancelha. Bonito demais pra ser confiável.
- Contrato?
- É. Eu sou advogada, esqueceu? Cláusulas, termos, multas.
Ele ri. Aquele riso rouco que faz minha espinha gelar.
- E qual seria a primeira cláusula?
- Sumir sem aviso rende multa de uma garrafa de Cabernet, safra especial. Segunda cláusula: se mentir, paga em champanhe francês.
Ele segura minha mão. Beija meus dedos. Responde no tom mais cínico do mundo:
- Então vou falir rapidinho, doutora.
Eu deveria rir. Mas engulo seco. Porque é a única verdade inteira que ele me deu hoje.
Depois de mais uma rodada de beijos, promessas e desculpas esfarrapadas, ele diz que precisa ir. Eu não pergunto pra onde. Eu sei.
Enquanto ele recolhe a gravata do chão, penso em falar:
"Fica."
Mas engulo. Eu sou a amante, não a esposa. Não tenho esse poder.
Ele me beija na testa. Esse beijo na testa me destrói mais que qualquer outra coisa. É quase um "te cuida", é quase um "até a próxima". É quase um "Você não é prioridade, mas eu volto."
Quando a porta se fecha, eu fico parada no meio da sala, pelada, enrolada num lençol. Olho pro sofá bagunçado. O cheiro dele ainda no ar.
Queria odiá-lo. Queria me odiar. Mas tudo que faço é suspirar e abrir outra garrafa de vinho.
Brindo sozinha à minha própria idiotice.
No chuveiro, deixo a água quente bater no rosto até a pele queimar. O vapor embaça o espelho. Eu também estou embaçada. Nem sei mais quem sou.
Lembro de quando me prometi não cair em ciladas. Lembro da menina que estudou, trabalhou, se impôs num escritório cheio de homens metidos. Lembro da mulher que planejou cada passo da carreira. Cada férias. Cada feriado.
Nada era por acaso.
Agora, cada mensagem dele é um acaso que destrói minha ordem.
Pergunto pra mim mesma: "Ele vai largar dela?"
A resposta é um nó que prefiro ignorar.
Deito na cama, celular na mão. Abro o WhatsApp. Ele está online. Me envia um áudio de 6 segundos:
"Já tô com saudade."
Eu ouço umas dez vezes. Meu coração se engasga. Ridícula. Eu. Não ele. Eu.
"A resposta engasga na garganta. Apago. Escrevo de novo. Apago de novo. No fim, mando só um 'obo'. Um coração vermelho logo depois. Ridícula. É como se eu dissesse: 'Olha pra mim, eu tô aqui, mesmo que você finja que não.'"
Poderia acabar aqui, mas eu sei como funciona. Amanhã ele vai mandar mensagem de bom dia. Vai prometer algo novo. Vai dizer que tá resolvendo. E eu vou fingir acreditar.
Porque o problema não é ele mentir. O problema sou eu acreditar.
Fecho os olhos. Imagino a cara da Rebeca, a esposa perfeita, com a vida perfeita. Imagino se ela sabe. Se ela sente. Se ela também finge.
Talvez ela finja. Talvez todo mundo finja. Talvez amor seja isso: um grande contrato com cláusulas que ninguém lê até dar ruim.
Meu último pensamento antes de apagar: eu poderia sair disso agora. Poderia bloquear, deletar, sumir.
Mas não vou.
Porque o cheiro dele ainda tá na minha pele.
Porque o vício já começou.
E eu, Marília Marques, que sempre segui todas as regras...
Agora vivo de exceções.