Capítulo 5 A Lista de Desculpas

Eu tento me convencer -e às vezes quase consigo- de que tenho direito a ser feliz com o único homem que eu amo.

Repito isso como um mantra toda vez que ele some, toda vez que a culpa mastiga o fundo da minha garganta, toda vez que lembro da cara dela - Rebeca, a esposa, a dona do contrato oficial, a que tem aliança, CPF ligado no mesmo endereço.

"Ele não ama ela. Ele me ama."

"Eu mereço isso. Eu esperei. Eu segurei tudo sozinha."

Como se fosse uma equação justa: eu dou tudo, logo, eu mereço tudo de volta. Mas não funciona assim. Eu sei. Eu sei muito bem. Mas eu minto pra mim porque acreditar na mentira dá menos trabalho do que encarar a verdade crua: eu sou a outra. Eu sou o desvio. Eu sou a exceção de um homem que não tem coragem de fazer de mim a regra.

E mesmo assim, eu me convenço. Fecho os olhos debaixo do chuveiro, deixo a água escorrer, imagino um dia perfeito - ele batendo na minha porta com uma mala, dizendo: "Acabou, Marília. Agora é só você."

Ridículo. Infantil. Mas é isso que me mantém respirando entre uma ausência e outra.

Eu me agarro nisso como se fosse um contrato válido. Assino mentalmente cada cláusula invisível:

Ele vai sair de casa.

Ele vai me ligar amanhã.

Ele não mente pra mim, mente pra ela.

Eu sou o amor verdadeiro, ela é o erro.

Que piada. Eu sei. Mas se eu não repetir isso pra mim, o que sobra? Sobra o sofá vazio depois que ele vai embora. Sobra a cama fria. Sobra o cheiro dele grudado na minha pele, me lembrando que eu sou só metade da história.

Tento me convencer de que eu tenho direito a ser feliz - porque eu trabalhei tanto, estudei tanto, engoli tanto sapo de homem frouxo, de chefe metido, de colega machista que me chamou de Marilinha quando eu virei sócia.

"Eu fiz tudo certo. Por que eu não posso fazer isso errado?"

É isso. Eu mereço o erro. Eu mereço o risco. Eu mereço o Fábio, mesmo sabendo que ele não é só meu.

Talvez eu mereça o amor - ou talvez eu mereça o castigo. Ainda não decidi.

Eu me sento no chão frio do banheiro, de costas pra porta fechada, as pernas encolhidas, os cotovelos apoiados nos joelhos. A água ainda bate na parede de azulejos, mas já não cai mais em mim. A toalha tá jogada no chão, esquecida. Meu corpo ainda pulsa quente, mas é uma febre vazia, que não resolve nada.

Encosto a cabeça na cerâmica gelada. A frieza do azulejo é tudo que eu tenho de sólido agora. O resto é fumaça: pensamentos, promessas, desculpas.

Respiro fundo, abro os olhos devagar, observo uma gota descendo pela parede. E então, quase sem perceber, começo minha lista mental. Minha Lista de Desculpas. É meu ritual íntimo, silencioso - o contrato que eu renovo comigo mesma toda vez que o Fábio some e volta.

Ele vai se separar.

Repito baixinho, só pra ouvir a mentira em voz alta. Se fosse verdade, eu não precisava repetir. Se fosse verdade, ele já teria saído da casa onde dorme com a Rebeca, já teria trazido a mala, o cachorro, os problemas. Mas não. Ele some, reaparece, e eu engulo isso como quem engole remédio vencido.

Ele não ama ela.

Eu rio. Uma risada curta. Não ama? Ama, sim. Ama o conforto, a casa, o status de marido exemplar que ele finge carregar. Ama ser o homem que tem tudo - até eu, guardada num canto escuro, como um troféu secreto.

Eu mereço sentir isso.

Essa é a pior. Porque é quase verdade. Depois de tantos anos trancando o peito a sete chaves, tantos relacionamentos mornos, tantas noites abraçada num travesseiro duro, eu acho que mereço essa bagunça. Mereço o frio na barriga, o perfume caro dele impregnado no sofá, a culpa mastigada em silêncio. Pelo menos é real. Pelo menos é forte.

Não é minha culpa se ele mente.

E aqui eu encontro um alívio torto. O empurrão que deixa tudo menos feio. Não é minha culpa se ele volta pra casa, deita na cama da Rebeca, beija a testa dela e jura que estava "resolvendo pepinos no escritório". Não é minha culpa se ele diz que vai sair e volta no dia seguinte com a mesma história de sempre. Não é minha culpa. Ou é?

Passo as mãos nos cabelos molhados, aperto a nuca, fecho os olhos. Sinto o peso do meu corpo, o peso da minha moral que derrete toda vez que o celular vibra.

Levanto. O box agora parece um confessionário. A toalha tá gelada. Eu me enrolo nela como se fosse uma armadura furada - cobre, mas não protege.

No quarto, o celular pisca na cabeceira. Notificação: Mensagem apagada.

Pego o aparelho, destravo a tela. Leio o aviso - a frase fantasma: "Mensagem apagada."

Por um segundo, imagino o que era. Talvez fosse: "Te quero de novo." Talvez fosse pior: "Não posso mais te ver." Talvez fosse só um "Oi". Tanto faz. É sempre uma isca. E eu, peixe treinado, mordo sem hesitar.

Sento na cama ainda úmida. Puxo uma camiseta velha, visto de qualquer jeito. O cheiro dele ainda tá no ar - um rastro que insiste em ficar mesmo depois que ele vai embora.

Abro o WhatsApp. Vejo o status online. Vejo o "digitando...". Vejo o sumiço. O silêncio. O looping que me prende aqui.

"Oi."

Apago.

"Tá tudo bem?"

Apago.

"Te quero de novo."

Eu mesma rio da ironia. Apago.

No fim, deixo o celular cair na cama. Me jogo de costas, encaro o teto. Lembro da minha mãe repetindo na adolescência: "Homem casado não larga esposa." Lembro de rir disso. Lembro de prometer: "Nunca vou ser a outra."

Olha aí, mãe.

A buzina do trânsito lá embaixo finge que o mundo segue normal. Lá fora tem gente indo pra academia, casal discutindo por causa do delivery errado, alguém lavando louça, alguém indo dormir cedo. E eu aqui, Marília Marques, advogada sênior, presa num romance clandestino que só existe no horário que ele permite.

No criado-mudo, uma taça de vinho da noite anterior ainda pela metade. Eu tomo o gole morno. Fecho os olhos. Deixo o álcool misturar com o gosto amargo de tudo que engulo calada.

O celular vibra. Nova mensagem. É ele:

"Você tá aí?"

Como se fosse preciso perguntar. Eu sempre tô.

"Tô."

Antes de apertar enviar, penso no que eu deveria escrever: "Não quero mais." "Vai embora." "Procura tua esposa."

Nada disso sai. Eu aperto enviar do jeito mais covarde: "Tô."

Três segundos depois, o áudio chega:

- "Queria você aqui" -ele sussurra, como se fosse segredo.

Eu ouço. Ouço de novo. Cada vez meu corpo se contrai como se fosse promessa nova, mesmo sabendo que é reciclagem velha.

Olho o espelho na porta do armário. Vejo meu reflexo: cabelo molhado, olhos fundos, boca entreaberta. Uma mulher bonita, inteligente, fodidamente fraca.

"Se fosse contrato, eu rasgava" -digo em voz alta, pra ninguém ouvir.

Mas não é contrato. É coração. Papel que pega fogo.

A campainha toca. Eu engulo em seco.

Nova mensagem: "Desci. Abre pra mim?"

Eu respiro fundo.

Na porta, meu reflexo me encara mais uma vez. E sorri. Um sorriso amargo. Um sorriso de quem já sabe que vai abrir.

E eu abro.

                         

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