Capítulo 3 Mensagem Fantasma

É culpa daquela mulher.

Se não fosse por ela, por esse laço invisível que o prende a outra vida, outra casa, outra promessa quebrada, ele já estaria comigo. Já teria escolhido, teria cruzado a linha e deixado tudo para trás. Mas não faz. E não faz porque está obrigado, porque aquele nome que eu não pronuncio está gravado na pele dele como uma corrente que ele não consegue romper, mesmo querendo.

Aquela mulher é o muro que me separa dele, o obstáculo que transforma cada encontro em um suspiro roubado, cada palavra em uma mentira disfarçada de verdade, cada ausência em um vazio que me consome. E eu aqui, esperando, presa nessa espera absurda, culpada por querer o que não posso ter e por me perder num jogo que não vamos ganhar.

Porque enquanto ela existir, enquanto ele tiver essa obrigação, eu sempre serei a outra. E essa culpa, que recai sobre ela, também pesa em mim.

Eu deveria estar dormindo.

Aliás, eu deveria estar fazendo qualquer outra coisa que não fosse me agarrar ao celular como se fosse um desfibrilador de autoestima. Mas estou aqui. Duas e vinte e três da manhã. Sentada no sofá, de moletom velho da faculdade, cabelo preso num coque torto, batom borrado de um vinho que já acabou faz uns trinta minutos - mas continuo lambendo a borda da taça, como se fosse encontrar ali algum sinal de dignidade.

No fundo, eu sei. Eu sei que essa notificação não vai chegar agora. E ainda assim, atualizo o WhatsApp como se fosse uma advogada em plantão de emergência. De certa forma, sou. A única diferença é que o réu é o meu coração - e a sentença, bom, essa já tá dada faz tempo.

Fábio disse que ia me ligar "assim que saísse da reunião".

Que reunião é essa, às onze da noite de uma sexta-feira? Sei lá. Deve ser a "reunião" com a cama king size dele. A Rebeca - esposa - deve estar deitada do lado, assistindo à série, preocupada com a logística do brunch de domingo. E eu? Eu aqui, decorando cada minuto do vácuo.

Levanto, caminho até a cozinha. Piso gelado no chão, luz fria demais. Abro a geladeira. Fecha a geladeira. Abro de novo. É automático, tipo TOC. A única coisa que mudou desde a última vez que abri é o gelo derretendo na forminha. E a minha paciência, que tá no negativo.

No meio das prateleiras, vejo um pote de geleia caro que comprei semana passada - promoção gourmet da delicatessen do Cambuí. Achei chique na hora. Agora olho pra ele e penso: que diferença faz se eu passar geleia no pão se nem pão eu tenho?

Meu celular vibra. Eu quase bato a cabeça na porta da geladeira de tanto que viro rápido. É instinto: ele! É ele! Claro que é ele!

Não é.

É Renata. Minha Renata. Minha melhor amiga, minha confidente, meu senso de realidade quando perco o meu - o que anda acontecendo toda quinta, sexta e sábado. Às vezes, domingo também.

"Tá viva?"

Respiro fundo. Digito devagar, como se fosse esconder meu fiasco:

"Infelizmente."

A bolinha dela fica verde, ela já tá digitando. Amo essa mulher. Amo mais do que amo esse homem. Pena que isso não me impede de fazer merda.

"Ele sumiu, né?"

"Não é sumiço. É estilo. É charme. É suspense."

"Ghosting de luxo."

Rio sozinha. Ela me conhece demais.

"Amiga, já te falei: homem casado é a mesma coisa que roupa em liquidação. Parece que vale a pena, mas vem com defeito. E não tem troca."

"Tá bem poética hoje."

"Vai dormir, Marília."

"Tô indo."

Mentira. Eu não vou.

Fecho a geladeira de novo, como se fosse um ritual de exorcismo. Volto pra sala. O sofá me engole. Ele tem cheiro de amaciante e solidão. Meu celular pousa no meu colo, pesado, quente - quase uma extensão do meu corpo. Eu penso: será que ele tá digitando? Será que tá escrevendo e apagando? Será que tá me esquecendo de propósito?

A TV tá ligada em algum noticiário de madrugada, mas eu nem escuto. Minha cabeça passa um filme: a primeira noite com ele. O primeiro sorriso torto. A primeira mentira que eu escolhi engolir como quem engole comprimido sem água.

Revivo aquela cena como se fosse agora. Eu de salto, vinho na mão, ele falando qualquer bobagem sobre Dubai. Eu nem sei onde é Dubai direito. Mas achei sexy. Ele me olhou como se fosse a primeira mulher do planeta. E eu deixei. Eu quis. Meu corpo inteiro gritou: vai. Minha cabeça disse: nem pensar. E adivinha quem perdeu?

Volto pro presente. Celular ainda mudo. Checo o Instagram - como se fosse achar pista de crime. Abro o perfil da Rebeca, claro. Sigo ela com uma conta fake, que eu criei só pra isso. Ali tá: uma foto dela hoje, num evento de gala. Vestido preto, cabelo impecável, legenda motivacional de mulher empoderada. A legenda diz: "Mulher de verdade não compete, brilha."

Eu queria rir. Mas rio de nervoso. Compete, sim. Nem que seja comigo. Nem que ela nem saiba.

Desço mais o feed. Ela tá linda em todas. Em uma delas, Fábio aparece atrás, segurando uma taça de espumante, sorriso que eu reconheço. Aquele sorriso que desmonta qualquer defesa. O sorriso que eu jurava ser meu, só meu, pelo menos por umas horas por semana.

Eu deveria largar isso.

Eu deveria bloquear ele.

Eu deveria bloquear ela.

Eu deveria, eu deveria, eu deveria...

Mas não bloqueio nada. Nem minha própria vergonha.

A Renata me manda áudio agora. Eu dou play, baixo o volume da TV:

- "Amiga, escuta uma coisa. Você não é burra, tá? Só tá apaixonada. Burro é ele. Ou talvez esperto demais. O ponto é: se ele quisesse largar tudo, já teria largado. Você sabe disso, eu sei disso, até o porteiro do seu prédio sabe disso. Então, decide logo: ou você larga ele, ou larga de ser trouxa. Escolhe qual dor você quer sentir. Beijo. Vai dormir."

Ela tem razão. Odeio quando ela tem razão.

Eu penso em responder, mas não respondo. Fico só ali, encolhida no sofá, celular pendurado na mão, como se fosse uma bomba-relógio. Fecho os olhos. Tento lembrar como era minha vida antes dele.

Era cinza. Era monótona. Mas era minha.

Agora é esse caos colorido que brilha quando ele aparece - e apaga quando ele some. E eu fico aqui, mexendo nos cacos.

A notificação vibra. Eu prendo a respiração. É ele?

Não é.

É o Uber Eats, oferecendo desconto em pizza. Eu queria tanto uma pizza agora. Mais ainda: queria ele aqui, no lugar da pizza. A pior parte? Eu sei que se ele aparecesse, eu abriria a porta. E abriria tudo de novo.

Penso em como vou encará-lo na segunda-feira, quando ele surgir do nada, cheio de explicações. Vai me dizer que o celular acabou a bateria. Que ficou preso numa reunião interminável. Que pensou em mim a noite toda.

Eu, boba, vou fingir que acredito. E, pior, vou querer acreditar. Vou me convencer de que sou especial. Que sou diferente. Que ele não faz isso com mais ninguém.

Deito no sofá. Puxo a manta cinza que fica jogada no braço. Meu corpo ainda cheira o perfume dele. Ainda sinto o toque da barba no meu pescoço. É ridículo como uma lembrança pode ter mais força que uma realidade.

Fecho os olhos. Imagino meu pai me olhando agora. Minha mãe. Se soubessem. Eu, a filha certinha, independente, advogada sênior com foto sorridente no site do escritório. "Marília Marques, especialista em contratos, compliance e gestão de crise." Mal sabem que a crise sou eu.

Destravo o celular pela última vez. Nenhuma mensagem. Nenhum áudio. Nenhuma desculpa esfarrapada. Nem um mísero "boa noite". Nada.

Eu rio. Baixinho, quase sem querer. Rir é a única coisa que ainda me lembra quem eu sou - ou quem eu era antes de virar A Outra.

Quando finalmente pego no sono, penso numa frase que li num livro velho, nem lembro de quem: "Às vezes, a gente se machuca devagar, só pra ter certeza de que ainda sente alguma coisa."

Talvez seja isso. Talvez eu só queira sentir.

Mesmo que doa.

Mesmo que suma.

Mesmo que volte.

E, quando voltar, eu vou abrir a porta. Claro que vou. Porque eu sou a Marília Marques - advogada sênior, controladora, independente. E completamente fora de controle.

            
            

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