Claro. A voz que eu ouvi deve ter sido um sonho. Heitor me deixou para morrer no asfalto.
Fiquei no hospital por três dias. Ninguém veio me visitar. Nem Heitor, nem sua família, nem a minha. Eu estava completamente sozinha. No quarto dia, eu mesma me dei alta.
Ao sair do hospital, meu telefone tocou. Era Arthur.
"Bia, venha para a casa principal. Agora."
Sua voz era sombria. Peguei um táxi para a mansão da família Ferraz, um lugar onde eu não ia há anos.
Entrei na grande sala de estar e me deparei com uma cena chocante. Arthur estava de pé sobre Heitor, que estava de joelhos. O velho segurava uma pesada tira de couro e a usava para chicotear as costas do neto.
"Você ousa abusar dela?" A voz de Arthur falhou de fúria. "Depois de tudo o que ela fez por você? Por esta família?"
Ele jogou a tira no chão com nojo. "Eu nunca vou aceitar aquela mulher Medeiros. Você vai se casar com a Bia, como sempre foi o plano."
Heitor olhou para cima, seus olhos encontrando os meus. Não havia remorso neles, apenas ódio puro e inalterado.
"Eu nunca vou me casar com ela", ele cuspiu. "Ela é a razão pela qual minha vida é um inferno. Ela é a razão pela qual não me resta dignidade."
Cada palavra era um golpe. Senti a dor familiar no peito, mas agora era surda, distante. Não havia mais nada para ele quebrar.
Arthur começou a falar, a contar-lhe a verdade, mas eu o impedi.
"Não", eu disse, minha voz firme. "Não importa mais."
Virei-me para sair. Não suportava ficar no mesmo quarto que ele por mais um segundo.
"Arthur planejou um jantar para nós esta noite", Heitor gritou atrás de mim, sua voz pingando sarcasmo. "Não se atrase."
Eu o ignorei e saí.
Mais tarde naquela noite, eu estava sentada na sala de jantar formal, o silêncio se estendendo entre nós. Arthur tentara fazer daquilo uma refeição familiar pacífica, uma última tentativa de reconciliação. Foi um fracasso.
Heitor chegou atrasado, e não veio sozinho. Cassandra estava em seu braço, um sorriso triunfante no rosto.
O rosto de Arthur escureceu de raiva, mas ele permaneceu em silêncio, por minha causa.
A refeição foi um exercício de miséria. Eu não conseguia comer, a comida tinha gosto de cinzas na minha boca. Pedi licença assim que foi educado fazê-lo.
Arthur me seguiu. Ele colocou um envelope grosso em minhas mãos. "Isto é para você. Tudo está arranjado. Uma nova vida, um novo começo."
"Obrigada", eu disse, minha voz embargada de emoção.
"Ele não te merece, Bia", disse Arthur, seus olhos cheios de arrependimento. "Ele não tem ideia do que jogou fora."
Dei-lhe um sorriso triste. "É melhor assim."
Eu estava calma. Havia aceitado meu destino. Este capítulo doloroso da minha vida finalmente havia acabado.
Quando eu estava saindo, Heitor me encurralou no corredor.
"Saindo tão cedo?" ele zombou.
Eu não respondi. Não havia mais nada a dizer. Virei-me para ir, mas ele bloqueou meu caminho, seus olhos perscrutando meu rosto. Havia uma emoção estranha e indefinível neles, algo que quase parecia confusão.