Ouvi a voz de Gustavo, suave e terna. "João Pedro, meu doce menino, o papai está aqui." Então a risada de uma criança. "Eu te amo, filho."
O telefone escorregou dos meus dedos dormentes e caiu no chão. João Pedro. João Pedro. O nome ecoou no quarto vazio. Ele a mandou embora para "se redimir", mas ele ainda era um pai. Seu coração estava com seu filho.
No dia seguinte, ele veio me levar para casa. Ele não me levou para o nosso apartamento. Ele me levou para uma estação de esqui em Campos do Jordão, aquela onde ele me pediu em casamento anos atrás.
Ele estava sorrindo, tentando ser o homem charmoso por quem me apaixonei. Ele se ajoelhou diante de mim, assim como fez naquele dia, e cuidadosamente prendeu os fechos dos meus patins de gelo.
"Lembra disso, Bela?", ele sussurrou. "Eu te disse que seguraria sua mão para sempre, para que você nunca caísse."
Eu lembrava. Também lembrava que ele me deixou cair, de novo, e de novo, e de novo.
Fui ao vestiário para me trocar. Quando saí, ele estava no gelo. Mas não estava sozinho. Estava com Helena e João Pedro. Ele segurava as pequenas mãos de João Pedro, ensinando-o pacientemente a deslizar no gelo. Helena estava por perto, radiante, ocasionalmente ajustando o capacete de João Pedro com uma ternura de esposa. Eles pareciam uma família perfeita em um feriado de inverno.
Eu queria me virar e correr, mas meus pés pareciam enraizados no lugar. Helena me viu. Ela patinou até mim, um sorriso triunfante no rosto.
"Ele não leva jeito?", ela disse, mostrando o celular com um vídeo de João Pedro rindo enquanto Gustavo o girava. "Gustavo é um pai tão bom. Ele passou todo o fim de semana passado ensinando-o."
Olhei para a data no vídeo. Era o fim de semana em que minha mãe estava morrendo no hospital. Ele me disse que estava em uma viagem de negócios na Ásia. Ele esteve aqui. Com eles.
Uma onda de raiva pura e negra me invadiu. No mesmo momento, uma dor aguda atravessou meu pé. Olhei para baixo. Havia um caco de vidro cravado na ponta do meu patim, deliberadamente colocado. Devia estar lá quando ele me ajudou a calçá-los.
"Ele é um bom pai", continuou Helena, sua voz pingando veneno. "Algo que você nunca poderia dar a ele. Você perdeu seu bebê, não foi? Tão triste."
"Não se atreva a falar do meu filho", sibilei, minha voz tremendo.
"Por que não?", ela provocou. "Ele nem era real, de qualquer maneira. Não como o meu João Pedro."
A discussão chamou a atenção de Gustavo. Ele patinou até nós, a testa franzida. Ele se posicionou automaticamente na frente de Helena, protegendo-a de mim.
"O que está acontecendo?", ele exigiu. "Por que você a está perturbando?"
João Pedro, ouvindo a palavra "perturbando", entendeu a deixa. Ele patinou para frente e bateu com a cabeça no meu estômago, bem onde a cicatriz da minha cirurgia ainda estava cicatrizando. O impacto enviou uma onda de dor através de mim, e eu gritei, dobrando-me.
"Você é uma mulher má!", João Pedro gritou. "Você maltratou minha mamãe!"
Olhei para Gustavo, esperando que ele interviesse, que me defendesse. Ele não o fez. Seu olhar estava fixo em Helena, que tinha uma mão pressionada no estômago, o rosto pálido. Ele havia esquecido que eu era a pessoa que acabara de ser agredida.
"Isabela, como você pôde?", ele disse, a voz cheia de decepção. "Ela está grávida. Você não pode ser tão imprudente."
Antes que eu pudesse sequer formar uma resposta, Helena soltou um grito agudo. "O bebê! Acho que estou perdendo o bebê!"
O rosto de Gustavo ficou branco de pânico. Ele pegou Helena nos braços e começou a patinar furiosamente em direção à saída. Na pressa, ele esbarrou em mim, me desequilibrando.
Caí com força. A lâmina afiada do meu próprio patim cortou minha panturrilha, um corte profundo e ardente. Ele nem olhou para trás. A última coisa que vi foi João Pedro, olhando por cima do ombro do pai, um sorriso triunfante e perverso no rosto.
Fiquei deitada no gelo frio, o sangue se acumulando ao redor da minha perna, completamente sozinha. Um funcionário do resort me ajudou a levantar, o rosto cheio de preocupação. Ele me acompanhou até a pequena clínica do resort.
Sentei-me na mesa de exame, meus dentes batendo de frio e choque. Liguei para o celular de Gustavo. De novo. E de novo. Ia direto para a caixa postal todas as vezes. Ele estava com ela.
Um sorriso sombrio e sem humor esticou meus lábios. Recusei a oferta da enfermeira de uma cadeira de rodas. Saí mancando da clínica, minha perna envolta em uma bandagem grossa.
Quase esbarrei nele no corredor. Ele estava do lado de fora de um quarto, de costas para mim. Seus olhos eram frios, duros como lascas de gelo.
"Você", ele disse, a voz pingando veneno. "Por sua causa, Helena quase teve um aborto. O médico disse que a gravidez dela agora é de alto risco. Você está feliz agora?"