986 Noites de Traição
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Capítulo 4

Fiquei paralisada no topo da escada, uma testemunha silenciosa da profanação. O ar no hall de entrada estava denso com o cheiro de polidor de madeira e do perfume enjoativo e triunfante de Isabela. Ela passou a mão pela superfície lisa da escrivaninha do meu pai, seu toque demorado.

"Cuidado com isso", ela instruiu os carregadores, a voz cheia de uma doçura falsa que me revirou o estômago. "É muito precioso."

Ela olhou para cima e me viu. Um sorriso lento e venenoso se espalhou por seu rosto. Era o sorriso de um predador que finalmente encurralou sua presa.

Caio também me viu. Ele teve a decência de desviar o olhar, a mandíbula tensa de vergonha. Mas ele não a impediu. Não disse uma palavra. Seu silêncio era um rugido de traição. Ele estava deixando isso acontecer.

Eu queria gritar, correr escada abaixo e me jogar na frente da escrivaninha, protegê-la com meu próprio corpo. Mas meus pés estavam presos ao chão, meus membros pesados com uma sensação esmagadora de derrota. Qual era o sentido? Ele já havia feito sua escolha.

Observei-os manobrar a pesada escrivaninha pelas portas duplas e para fora, na noite. Foi-se. Simples assim.

Virei-me e voltei para o meu quarto, meus movimentos rígidos e robóticos. O quarto parecia cavernoso e vazio sem a presença familiar do meu órgão de perfumes. O espaço onde ele estivera era uma ferida aberta no quarto, um vazio que espelhava o do meu peito.

Rastejei para a cama, mas o sono era um país distante que eu não conseguia alcançar. Cada rangido da casa, cada sirene distante, soava como um julgamento.

Devo ter adormecido em algum momento, porque fui acordada bruscamente pela sensação do colchão afundando ao meu lado. Caio havia se deitado na cama. Ele não me tocou. Apenas ficou ali, de costas para mim, sua respiração um ritmo tenso e infeliz no escuro.

O silêncio se estendeu pelo que pareceram horas.

"Ela estava tão feliz, Ju", ele finalmente sussurrou na escuridão. Sua voz estava crua. "Você devia ter visto o rosto dela. Ela disse que parecia que a Eleonora estava com ela."

Eu não respondi. Não conseguia. Não havia mais palavras.

"Ela disse... ela disse que finalmente sente que pode começar sua própria vida agora. Como se finalmente pudesse ser criativa de novo." Ele fez uma pausa. "Esta é a última coisa, eu prometo. Então seremos apenas nós."

Suas promessas eram inúteis, moedas vazias em uma moeda falida. Eu não tinha mais nada para dar, nada mais para eles tirarem.

Ou assim eu pensava.

Na manhã seguinte, Isabela estava lá para o café da manhã, radiante. Ela exibia esboços para seu novo "estúdio de design", com meu órgão de perfumes como a gloriosa peça central.

"Vai ser uma homenagem ao espírito artístico de Eleonora", ela anunciou a Caio, ignorando completamente minha presença. "Estou até pensando em lançar uma pequena linha de artigos para casa. 'O Sonho de Eleonora'."

Caio sorriu, um sorriso triste e quebrado. "Ela teria adorado isso, Bela."

Isabela então se virou para mim, seus olhos brilhando com malícia. "Ah, Juliana, quase esqueci. Havia uma caixa com seus frasquinhos dentro da escrivaninha. Não se preocupe, não os joguei fora. Coloquei no armário do quarto de hóspedes para você."

Meus óleos essenciais. O cerne do meu trabalho. Os aromas insubstituíveis que eu havia coletado e criado ao longo dos anos. Alívio, agudo e feroz, percorreu-me. Eles estavam seguros.

Mas o sorriso dela me dizia o contrário.

"Eu tive um pequeno acidente, no entanto", disse ela, a voz baixando para um sussurro conspiratório. "Eu estava tentando cheirar um deles, e sou tão desastrada. O frasco escorregou." Ela levantou a mão, mostrando um pequeno curativo perfeitamente aplicado no dedo. "Era aquele que cheirava a livros velhos e chuva."

Meu sangue gelou.

Aquele não. Por favor, aquele não.

Era uma mistura personalizada. O cheiro do meu pai. Eu passei anos aperfeiçoando-o depois que ele morreu, tentando capturar sua essência: o cheiro de sua antiga biblioteca, o tabaco de cachimbo que ele às vezes fumava, o leve aroma de terra úmida de seu jardim após uma tempestade. Era tudo o que me restava dele.

Levantei-me da cadeira e corri, não andei, para o quarto de hóspedes. Abri a porta do armário com força.

Lá, no chão, havia um frasco de vidro quebrado. E encharcando o carpete branco imaculado, uma mancha escura e crescente.

O ar estava denso com o cheiro do meu pai.

Minha memória dele, liquefeita e evaporando lentamente para o nada.

Caí de joelhos, um som de pura angústia rasgando minha garganta. Tentei recolher o vidro, o líquido, como se pudesse de alguma forma juntá-lo novamente. As bordas afiadas do frasco quebrado cortaram minhas palmas, mas eu não senti a dor.

Tudo o que senti foi a perda final e devastadora.

Caio e Isabela apareceram na porta.

"Juliana, o que há de errado?", Caio perguntou, a voz cheia de alarme.

Isabela espiou por trás dele, um olhar de falso horror no rosto. "Meu Deus! Era isso que estava no frasco? Sinto muito, muito mesmo, Juliana. Foi um acidente, eu juro."

Olhei para Caio, meu rosto molhado de lágrimas, minhas mãos pingando sangue e os últimos vestígios do meu pai.

"Ela fez isso de propósito", engasguei. "Ela o destruiu."

Caio olhou de minhas mãos sangrando para o lábio trêmulo de Isabela. Ele viu minha dor crua e desenfreada, e viu a fragilidade cuidadosamente construída dela.

Ele se ajoelhou e tentou pegar minhas mãos. "Juliana, acalme-se. Foi um acidente. Podemos conseguir mais para você. Eu compro qualquer perfume que você quiser."

"Você não pode comprá-lo de volta!", gritei, afastando minhas mãos. "Você não entende! Você nunca entende!"

Isabela começou a chorar. "Caio, ela está me assustando. Ela está me olhando como se quisesse me machucar."

Ele se levantou, o rosto endurecendo. Ele puxou Isabela para trás de si, protegendo-a de mim. De sua esposa enlutada e sangrando.

"Já chega, Juliana", ele disse, a voz fria como gelo. "Você está histérica. Está perturbando a Isabela. Olhe o que você fez com ela."

Ele me deu as costas completamente, envolvendo os braços em volta de Isabela, sussurrando palavras calmantes em seu cabelo.

Eu estava no chão, cercada pelo fantasma do meu pai, minhas mãos sangrando, meu coração partido em um milhão de pedaços. E meu marido, meu protetor, estava com minha algoz, culpando-me pela minha própria dor.

Esse foi o momento. O fim definitivo e irreversível. A última gota de esperança de que o homem com quem me casei ainda estivesse lá em algum lugar, morreu. E em seu lugar, uma certeza calma e arrepiante se enraizou.

Para mim, tinha acabado.

            
            

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