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Os lençóis limpos da cama da clínica pareciam uma jaula. Por dois dias, Heloísa foi examinada, cutucada e alimentada. Era uma existência estéril e silenciosa, mas não era liberdade. Ela era um espécime, uma curiosidade. Sabia que estavam esperando por algo. Um nome. Uma história. Um resultado de DNA.
Ela não queria dar a eles um. Qual era o sentido? A única pessoa que ela queria ver já a havia condenado.
Na terceira manhã, a televisão em seu quarto estava ligada, sintonizada em um programa de notícias matinal. Um apresentador alegre discutia o evento social mais aguardado da cidade.
"...e o casamento do ano está chegando! O CEO do Grupo Medeiros, Bernardo Medeiros, e a herdeira Eva Matos estão prestes a se casar neste sábado em uma cerimônia suntuosa na Catedral da Sé."
Uma foto de Bernardo e Eva preencheu a tela. Eles estavam sorrindo, radiantes. Ele olhava para Eva com uma expressão de pura adoração. O mesmo jeito que ele costumava olhar para ela.
A câmera focou em um clipe de entrevista pré-gravado. Eva segurava a mão de Bernardo, seu anel de noivado de diamante brilhando.
"Ele é minha rocha", disse Eva, sua voz escorrendo uma doçura açucarada. "Depois de tudo que passei, encontrar minha verdadeira família, encontrar o Bernardo... é um sonho que se tornou realidade."
Bernardo apertou a mão dela. "Ela é a melhor coisa que já me aconteceu. Mal posso esperar para torná-la minha esposa."
As palavras atingiram Heloísa como uma força física. Ela sentiu o ar sair de seus pulmões. Era final. A última brasa de esperança que ela nem sabia que ainda guardava se apagou.
Ele amava Eva. Ele ia se casar com ela. Sua própria história, seu sofrimento, sua existência inteira, era irrelevante. Um capítulo antigo em um livro que ele havia fechado há muito tempo.
Ela tinha que sair.
Esperou até que a enfermeira deixasse sua bandeja de café da manhã. Seu corpo estava fraco, mas sua vontade era uma coisa fria e dura dentro dela. Ela deslizou para fora da cama, seus pés descalços silenciosos no chão de azulejo. As roupas que lhe deram - uma simples camisola de algodão - eram tudo o que ela tinha.
Ela não se importava.
Ela saiu do quarto e entrou no corredor silencioso. Não havia guarda, apenas um posto de enfermagem no final. Ela se moveu na direção oposta, em direção a uma saída de serviço que havia notado antes.
Seu coração batia em seu peito, um ritmo frenético e doloroso. Cada sombra parecia conter uma ameaça. Mas ninguém a parou. Ninguém sequer notou a figura silenciosa e arrastada na camisola de hospital.
Ela empurrou a porta pesada da escada de serviço e passou. A porta se fechou com um clique atrás dela, selando sua fuga. Ela desceu as escadas de concreto, seus pés descalços frios, sua respiração saindo em arquejos irregulares.
Lá fora, o ar da cidade estava fresco e nítido. Parecia real. Ela não era mais uma paciente, uma indigente. Era apenas mais uma alma perdida nas ruas de São Paulo.
Ela andou sem destino, deixando seus pés a levarem. Passou por parques onde brincara quando criança, por restaurantes onde ela e Bernardo haviam compartilhado jantares secretos, pelo teatro onde ele a beijou pela primeira vez. A cidade era um museu de sua vida morta.
Eventualmente, ela se viu caminhando para o leste, em direção ao rio. A forma icônica da Ponte Estaiada se ergueu diante dela, uma renda escura contra o céu da manhã.
Ela sabia o que tinha que fazer.
Subiu a rampa de pedestres, juntando-se aos turistas e corredores. Ninguém lhe deu um segundo olhar. Ela era invisível.
Encontrou um lugar no meio da ponte, o vento chicoteando sua fina camisola em torno de suas pernas. Ela olhou para a água escura e agitada do Rio Pinheiros. Parecia fria e final.
Ela escalou a grade de segurança, seus movimentos desajeitados, mas determinados. Ficou na borda estreita, as costas pressionadas contra o aço frio da ponte. O horizonte da cidade brilhava diante dela. Era lindo. Uma cidade linda e cruel que a construiu e depois a mastigou e cuspiu fora.
Toda a dor, a humilhação, o terror... começou a parecer distante. A memória do rosto de Bernardo no beco, seus olhos cheios de nojo, foi a última coisa a desaparecer.
Não havia mais esperança. Não havia mais luta. Havia apenas isso. Uma queda. Um fim.
"Sinto muito, Bernardo", pensou ela, não com perdão, mas com uma tristeza profunda e cansada. "Sinto muito por não ter sido o suficiente."
Ela fechou os olhos e se soltou.
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No exato momento em que Heloísa caiu, o Dr. Alan olhava para dois relatórios em sua mesa. Um era uma cópia do teste de DNA original de dois anos atrás, aquele que nomeara Eva Matos como filha de Vicente Medeiros. O outro era o que ele acabara de receber do laboratório.
Ele leu uma vez. Depois uma segunda vez. Suas mãos começaram a tremer.
Era impossível.
Ele verificou os números das amostras, os protocolos do laboratório. Tudo estava correto. Não havia erro.
O teste original tinha sido uma fraude. Uma fabricação completa.
O DNA da mulher marcada e muda em sua clínica era uma correspondência quase perfeita com Vicente Medeiros. A probabilidade de ela ser sua filha biológica era de 99,999%.
Ele pegou o telefone, seus dedos atrapalhados com o teclado. Ele tinha que ligar para Bernardo Medeiros. Agora.
"Escritório do Sr. Medeiros." Era a voz de Marcos.
"É o Dr. Alan. Passe para ele. É uma emergência."
Um momento depois, a voz de Bernardo veio na linha, ríspida e impaciente. "O que foi?"
"Os resultados do DNA chegaram", disse o Dr. Alan, a voz trêmula. "O teste original... foi forjado. A mulher que temos aqui... é ela. É a Heloísa. É a filha do seu pai."
O silêncio do outro lado foi absoluto.
O Dr. Alan respirou fundo. "Sr. Medeiros? O senhor está aí?"
O único som foi o baque de um telefone caindo na mesa, seguido por um baque pesado e nauseante.