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Bernardo não conseguia afastar a imagem. Os olhos da mulher. A tatuagem. Ele estava sentado em seu escritório na cobertura, a cidade se estendendo abaixo dele como um cobertor de diamantes, mas tudo o que conseguia ver era a imundície daquele beco.
"Encontre-a", disse ele a seu assistente, Marcos, na manhã seguinte.
"Senhor? Encontrar quem?"
"A mulher de ontem à noite. A moradora de rua."
Marcos parecia confuso. "Por quê? Eu dei dinheiro a ela. Ela foi embora."
"Quero saber quem ela é. Quero saber de onde ela veio. Havia algo... familiar nela." Ele não conseguia dizer o nome. Heloísa.
Marcos, sempre eficiente, não questionou mais. "Vou cuidar disso, senhor."
Marcos levou menos de um dia. Ele usou as filmagens de segurança do prédio, software de reconhecimento facial e uma rede de contatos que o dinheiro podia comprar. Ele a encontrou em um pequeno abrigo municipal na Região da Luz.
Quando o carro particular de Bernardo parou, a equipe ficou intimidada. Marcos cuidou de tudo, explicando que o Sr. Medeiros era um filantropo interessado no problema dos sem-teto da cidade. Era uma mentira plausível.
Eles a encontraram em um catre estreito em um quarto lotado e barulhento. Ela estava dormindo, ou inconsciente. Não se mexeu quando eles se aproximaram. Olhando para ela de perto, sem as sombras do beco, Marcos sentiu um nó de pena e nojo no estômago. Seus ferimentos eram piores do que ele imaginara.
Bernardo havia enviado um médico particular com eles. Um profissional discreto que trabalhava para a família. O médico, um homem chamado Alan, ajoelhou-se ao lado do catre.
"Precisamos transferi-la para uma clínica particular", disse o Dr. Alan em voz baixa, o rosto sombrio. "Não posso examiná-la adequadamente aqui."
A transferência foi organizada rápida e silenciosamente. Eles a levaram para uma clínica particular em Higienópolis, um lugar que valorizava a discrição acima de tudo. Em um quarto limpo e branco, o médico começou seu exame. Heloísa estava acordada agora, mas passiva, seus olhos vazios enquanto a despiam e a deitavam na mesa de exame.
"Meu Deus", sussurrou o Dr. Alan enquanto limpava a sujeira de seu rosto. A extensão total da cicatriz era horrível. Não era apenas um corte; a pele estava derretida, brilhante e esticada. "Isso foi ácido. Um corrosivo forte."
Marcos se sentiu mal. Ele tinha visto muitas coisas trabalhando para Bernardo Medeiros, mas isso era diferente. Isso era bárbaro.
O médico passou para a mão esquerda dela. Ele sondou gentilmente a forma mutilada. "Os ossos... não estão apenas quebrados, foram metodicamente esmagados. Um por um. Isso foi feito deliberadamente, com força extrema. A mão é inútil. Nunca mais funcionará."
Heloísa permaneceu imóvel, sem se encolher. Era como se ela estivesse observando o exame do corpo de outra pessoa. Ela sentiu uma estranha e amarga sensação de vindicação. Vejam? Vejam o que fizeram comigo?
O médico continuou seu trabalho, sua expressão ficando mais perturbada a cada descoberta. Ele usou uma pequena luz para olhar em sua garganta.
"Eu não entendo", murmurou ele. Tentou novamente. "Suas cordas vocais... foram cortadas. Quase cirurgicamente. Não é um ferimento de acidente. Alguém fez isso com ela."
Ele olhou para Marcos, os olhos arregalados de choque. "Quem faria isso com outro ser humano? Isso é tortura."
Marcos não conseguiu responder. Ele só conseguia encarar a mulher quebrada na mesa.
Em sua mente, ele reviveu a cena que levou ao exílio de Heloísa Medeiros. Ele era um assistente júnior na época, mas se lembrava claramente. A reunião de família no escritório de Vicente Medeiros.
Eva Matos, a recém-descoberta filha perdida, estava chorando, com o braço em uma tipoia.
"Ela me empurrou", soluçou Eva. "Ela disse que eu era uma farsa, uma usurpadora. Ela tentou abrir o cofre principal. Quando tentei impedi-la, ela me empurrou escada abaixo."
O rosto de Vicente Medeiros era uma tempestade. Alícia Marques, mãe de Bernardo, correu para consolar Eva, lançando adagas para Heloísa.
Heloísa ficou lá, desafiadora e orgulhosa. "Ela está mentindo. Tudo. O cofre já estava aberto quando cheguei. Ela está me incriminando."
Bernardo ficou em silêncio, dividido. Ele amava Heloísa, mas Eva era agora a herdeira biológica, confirmada por um teste de DNA. Sua lealdade estava mudando.
"E o dinheiro?", rugiu Vicente. "Dois milhões de reais em títulos ao portador, sumiram do cofre. Onde está, Heloísa?"
"Eu não sei! Eu não peguei!"
Ninguém acreditou nela. As evidências pareciam esmagadoras. Eva, a garota doce e inocente, havia sido atacada. Heloísa, a herdeira orgulhosa e às vezes difícil, tinha um motivo. Ela havia perdido sua posição, sua herança.
A família a expulsou. Disseram ao mundo que ela tinha ido para a Europa para esfriar a cabeça, uma história que encobria sua vergonha. Nunca denunciaram o roubo à polícia, para evitar um escândalo.
Agora, olhando para a mulher na mesa, Marcos sentiu um pavor frio. A história não batia. A Heloísa que ele lembrava teria lutado. Teria gritado sua inocência dos telhados. Ela nunca teria se permitido se tornar... isso.
O médico estava coletando uma amostra de sangue. "Vamos fazer um painel completo. Verificar doenças, toxinas... e um teste de DNA."
"Um teste de DNA?", perguntou Marcos, surpreso.
"Procedimento padrão para pacientes não identificados com trauma significativo", disse o médico, embora seus olhos sugerissem outra razão. Ele tinha visto a tatuagem em seu pulso. Tinha ouvido os rumores sobre a família Medeiros. Ele estava sendo minucioso. "Devemos ter os resultados em vinte e quatro horas."
Ele deu a ela um sedativo, e seus olhos finalmente se fecharam.
Marcos saiu do quarto e ligou para Bernardo.
"Senhor, nós a encontramos. Ela está... ela está em péssimo estado." Ele descreveu as descobertas do médico em uma voz baixa e trêmula. O ácido. A mão esmagada. As cordas vocais cortadas.
Houve um longo silêncio do outro lado da linha.
"É ela?", a voz de Bernardo estava tensa, forçada.
"Eu... eu não sei, senhor. Ela está irreconhecível. Mas o médico está fazendo um teste de DNA. Saberemos com certeza amanhã."
Outro silêncio. Então, "Mantenha-a aí. Não deixe ninguém entrar ou sair. E Marcos... descubra quem fez isso com ela."
"Sim, senhor."
Marcos desligou. Ele olhou de volta através do vidro para a forma adormecida de Heloísa. Uma onda de pena, tão forte que quase dobrou seus joelhos, o dominou. Ele pensou na nota de cem reais que tentou dar a ela. Pensou no desprezo frio de Bernardo.
Tire-a daqui. Não quero ver essa imundície na propriedade da empresa.
Se esta mulher era quem ele pensava que era, eles tinham feito mais do que apenas expulsá-la. Eles a tinham jogado aos lobos.