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O sedativo arrastou Heloísa para um poço negro, mas não havia paz ali. Os pesadelos vieram, vívidos e cruéis. Ela estava de volta ao porão úmido e frio, o cheiro de mofo e medo espesso no ar.
Suas mãos estavam amarradas a uma cadeira. Eva Matos estava diante dela, não a garota doce e inocente que o mundo via, mas um monstro com um rosto lindo.
"Você ainda é tão orgulhosa, não é, Heloísa?", a voz de Eva era suave, melódica, mas cheia de veneno. "Mesmo agora."
Heloísa tentou falar, gritar, mas uma mordaça estava enfiada em sua boca. Ela só podia fuzilar com o olhar a mulher que havia roubado sua vida.
Eva riu. "Ah, esse olhar. Eu vi esse olhar a minha vida inteira. O olhar da princesinha para a filhinha pobre da empregada. Você nunca me viu, não é? Eu era apenas parte da mobília."
A mãe de Eva tinha sido governanta na mansão dos Medeiros. Uma confissão no leito de morte revelou a verdade: ela havia trocado os bebês no nascimento. Eva era a filha biológica de Vicente Medeiros. Heloísa era a filha da governanta.
"Minha mãe queria uma vida melhor para mim", continuou Eva, circulando a cadeira. "Ela me deu a eles. Mas eles deram tudo a você. O nome. O dinheiro. O poder. Eles até te deram o Bernardo."
Com a menção do nome dele, uma nova onda de dor atingiu Heloísa.
"Não se preocupe", ronronou Eva, inclinando-se para perto. "Vou cuidar muito bem dele. Ele já é meu. O teste de DNA provou. Eu sou a verdadeira Medeiros. Você é apenas... lixo."
A memória da reunião de família passou por sua cabeça. Seu pai, Vicente, olhando para ela como se fosse um produto defeituoso que ele estava devolvendo.
"Você não faz mais parte desta família, Heloísa. Você é uma ladra e uma mentirosa. Você não é nada para mim."
Alícia, sua madrasta, tinha sido ainda mais cruel. "Eu sempre soube que havia algo de errado com você. Você nunca foi grata. Agora temos uma filha de verdade. Uma filha que merece o nome Medeiros."
As palavras doeram mais do que qualquer golpe físico. A traição absoluta das pessoas que deveriam amá-la.
No porão, Eva pegou um pequeno frasco de uma mesa. "Preciso ter certeza de que você nunca mais vai voltar. Que nunca poderá contar a verdade a ninguém."
Os olhos de Heloísa se arregalaram de terror quando Eva destampou o frasco. O cheiro acre de ácido encheu o ar.
"Isso vai arruinar esse seu rostinho lindo", disse Eva, como se estivesse conversando. "O rosto que todos adoravam."
Ela inclinou o frasco. O fogo líquido atingiu a pele de Heloísa. A dor foi absoluta, inimaginável. Consumiu-a. Ela se debateu na cadeira, mas não havia escapatória.
Através de uma névoa de agonia, ela viu Eva sorrindo.
"Agora, para isso", disse Eva, pegando um martelo pesado. Ela agarrou a mão esquerda de Heloísa. "Você já foi pintora, não é? Tão artística. Tão talentosa."
O primeiro golpe atingiu seus nós dos dedos. O som de ossos se partindo ecoou na pequena sala. Depois outro, e outro. Heloísa gritou na mordaça, o som uma agonia abafada.
"E essa voz", disse Eva, seu trabalho feito. Ela pegou uma tesoura cirúrgica. "Sempre tão imponente. Tão segura de si. As pessoas sempre te ouviam."
Ela arrancou a mordaça da boca de Heloísa. Heloísa ofegou por ar, a garganta em carne viva.
"Por favor", ela sussurrou roucamente. "Não."
"Implorando? Que patético", zombou Eva. Ela forçou a boca de Heloísa a se abrir.
A memória se tornou um borrão de metal frio e dor ofuscante. Ela sentiu uma sensação de rasgo, uma inundação de sangue. E então, silêncio. Ela não conseguia mais emitir um som.
Eva se inclinou, seu hálito quente no rosto sangrando de Heloísa. "Vou dizer a eles que você fugiu para a Europa com o dinheiro. Bernardo e eu vamos nos casar. Ele vai esquecer de você. Todos eles vão."
O sonho mudou. Eva se foi, e Heloísa estava na traseira de uma van, jogada sobre um monte de trapos. Eles dirigiram por horas, finalmente parando em uma cidade desolada e miserável no meio do nada. Dois homens grandes a arrastaram para fora e a jogaram em uma vala na beira de uma estrada de terra.
"A chefe mandou deixar você aqui", um deles resmungou. "Boa sorte."
Eles partiram, deixando-a quebrada, desfigurada e muda em um lugar onde ninguém conhecia seu nome.
Ela acordou na clínica, ofegante, o corpo encharcado de suor. O quarto branco e austero foi um choque após a escuridão do sonho. Uma enfermeira entrou correndo.
"Está tudo bem, você está segura", disse a enfermeira, a voz gentil.
Mas Heloísa não estava segura. As memórias estavam sempre lá, esperando por ela. Ela estava presa na prisão de sua própria mente.
Ela olhou para sua mão mutilada, as cicatrizes horríveis em seu braço. Não era um sonho. Era real. Tudo.
Ela fechou os olhos, mas as imagens não desapareciam. O sorriso triunfante de Eva. O rosto confuso e depois desdenhoso de Bernardo no beco. A rejeição fria de seu pai.
A dor emocional era uma pulsação constante e profunda, muito pior que qualquer um de seus ferimentos físicos. Eles não haviam apenas destruído seu corpo. Eles haviam destruído sua alma.
Seu único pensamento era em Bernardo. O menino com quem ela cresceu, o homem que ela amou. Ele olhou para ela, viu a tatuagem que os unia, e ainda assim se virou. Ele escolheu a mentira. Ele escolheu Eva.
Esse foi o corte mais profundo de todos.
Uma lágrima escapou de seu olho e deslizou por sua bochecha marcada. Não era uma lágrima de tristeza, mas de desespero absoluto e oco.