Os cabelos escuros agora trazem marcas do tempo, mas em vez de enfraquecê-lo, cada fio grisalho parece ter se transformado em cicatriz visível de poder. O terno preto, impecavelmente alinhado, molda sua figura rígida, quase pétrea, como se fosse feito de ferro. Ele não precisa erguer a voz nem mover um músculo - a ameaça está no silêncio, no olhar frio que corta como lâmina.
O poder da família Moretti foi forjado em sangue e selado com traição. Não herdamos nada - tomamos. Não pedimos lealdade - arrancamos pelo medo. Para Vittorio, isso bastava. Controle, influência, domínio: tudo à nossa volta pertence a nós.
Tudo, exceto os Rinaldi.
Quando a porta finalmente se abre, o ar muda. Giovanni Rinaldi atravessa o limiar como quem invade território inimigo, mas há algo nele que atrai e amedronta ao mesmo tempo. Postura ereta, queixo erguido, cada passo carregado da arrogância que só os nascidos com sangue Rinaldi sabem exibir. Seus olhos, marcados pelas duas cores da linhagem, fixam-se em mim como lâminas afiadas que cortam e prendem o olhar. Há uma força silenciosa em sua presença, quase magnética, que torna impossível desviar o olhar. Não há disfarce, não há polidez. Apenas ódio cru, mas carregado de um magnetismo que arrasta e intimida.
Por um instante, penso em como seria fácil retribuir o olhar, em como seria libertador lançar de volta todo o veneno que ferve dentro de mim. Mas me lembro do peso da mão de Vittorio sobre meus ombros desde a infância: controle absoluto.
Sustento o olhar de Giovanni. Não abaixo a cabeça. Não ofereço o que ele espera.
Ele é o primeiro a falar.
- Então... é você. - A voz é carregada de desprezo. - O descendente Moretti escolhido para envenenar o meu nome.
Cada palavra dele é cuspida como se fosse sujeira.
- Chamaria de envenenar... ou de unir. - Minha resposta é calma, gelada, como o próprio Vittorio exigiria. - Depende de quem escreve a história.
Os olhos de Giovanni se estreitam, um brilho de fúria passando rápido, mas suficiente para me mostrar que o atingi.
- Não precisa de narradores para a sua família, Alessio. - Ele cospe meu nome como se queimasse. - A cidade inteira conhece os crimes dos Moretti.
Engulo a raiva. Cada músculo do meu corpo implora para reagir, mas sei que uma explosão agora só serviria para me envergonhar diante de Vittorio.
- E ainda assim está aqui. - Dou um passo à frente, reduzindo a distância que ele parecia querer manter. - Pronto para cumprir o contrato. Parece que até o ódio se curva ao destino.
Ele ri. Um som baixo, curto, sem alegria.
- Não confunda dever com escolha. Estou aqui porque somos todos prisioneiros. Você tanto quanto eu.
A frase me atravessa de forma estranha, como se ele tivesse posto em voz alta algo que eu nunca admitiria. Mas não demonstro. Não diante dele.
- Não pensei que o Don da família Rinaldi se curvaria a uma decisão que não lhe agrada. - A minha voz é um fio de lâmina, carregada de desprezo. - Mas aqui está você, sorrindo para o que deveria sentir como afronta. Curioso... ou talvez apenas patético.
O silêncio retorna, denso, sufocante. Sinto o olhar de Vittorio sobre mim, avaliando cada mínimo gesto. Giovanni também percebe, porque o sorriso breve que surge em seus lábios tem gosto de provocação.
Por fim, ele se inclina, tão próximo que consigo sentir o calor do seu desprezo.
- Se acha que um Rinaldi vai se ajoelhar diante de um Moretti, está delirando. O casamento pode ser imposto, Alessio, mas o ódio... o ódio é livre, e cresce como veneno onde nenhum contrato alcança.
O olhar dele desliza sobre mim de cima a baixo, frio, calculista, como se estivesse catalogando cada fraqueza para cravá-la na primeira oportunidade. Eu me calo, erguendo o silêncio como única armadura.
- Vocês torceram o contrato, manipularam cada linha até achar uma brecha que parecesse vitória. Mas não confundam truque barato com poder, nem astúcia com inteligência. Os Rinaldi nasceram no fogo e no sangue, e quem ousa nos subestimar não vive para contar a história.
Ele se afasta um passo, deixando para trás o gosto amargo de cada palavra.
Eu não reajo. Não aqui, não agora. Ainda não. Mas por dentro, a corda que Vittorio colocou em volta do meu pescoço se aperta um pouco mais. Giovanni é mais que um noivo forçado. É o inimigo que agora dormirá sob o mesmo teto que eu. O inimigo que, por ironia cruel, se tornará a sombra mais próxima da minha vida.
Giovanni ainda me encara quando a voz de Vittorio corta o ar. Grave, calma, mas carregada do veneno que sempre me moldou.
- Chega. - Ele não levanta a voz, não precisa. A ordem ecoa como um decreto, impossível de ignorar. - O suficiente de teatro.
Giovanni solta um meio sorriso, insolente, antes de voltar o olhar para Vittorio.
- Teatro? Eu diria que é só o primeiro ato.
O brilho nos olhos de meu pai endurece, e por um instante sinto o perigo latente no ar, como um trovão prestes a cair. Mas Vittorio se controla - e quando ele se controla, é ainda mais aterrorizante.
- Não importa o que vocês sentem. - Ele se levanta, impondo sua presença sobre nós dois como uma sombra que engole o ambiente. - O contrato foi assinado. Giovanni, você será ligado à nossa família pelo sangue da união.
Alessio, você será a peça que manterá esse acordo.
Cada palavra dele me prende ainda mais ao chão. Giovanni cruza os braços, a mandíbula rígida.
- E se eu recusar?
Vittorio se aproxima. O silêncio que antecede sua resposta é pior do que qualquer grito.
- Não vai recusar. Porque você conhece as consequências. - Ele fala devagar, saboreando cada sílaba. - E porque, no fundo, Giovanni, sabe que não há saída. Foi um acordo entre famílias. Feito antes de seu pai morrer. Sua última exigência.
Giovanni sustentando o olhar de Vittorio. A raiva dele é palpável, mas até mesmo o filho dos Rinaldi compreende que há limites que não pode cruzar. Pelo menos por enquanto.
- Que assim seja. - Giovanni fala com seus olhos cravados aos meus. E soa como uma ameaça velada.
Eu permaneço imóvel. O peso do olhar de ambos recai sobre mim, como se fosse o elo frágil entre dois mundos prestes a explodir.
Vittorio, então, volta-se para mim, e sua voz soa como uma sentença final:
- Lembre-se, Alessio. Você não está apenas aceitando um casamento. Está garantindo o futuro da nossa família. Se falhar... não será apenas o seu destino que estará em jogo.
Outra ameaça paira, clara, sem necessidade de mais explicações.
Quando Giovanni enfim se afasta sem me olhar uma ultima vez, a sala parece respirar de novo, mas eu não. O ar continua preso na minha garganta, como se a própria vida fosse uma corrente mantida pelas mãos de Vittorio.
O primeiro capítulo desse teatro termina no silêncio. Eu e Giovanni, inimigos acorrentados pela vontade de nossos pais, cientes de que o ódio que carregamos um pelo outro será apenas o início dessa guerra íntima.