Capítulo 2

Ponto de Vista: Elisa

A porta da frente se abriu pouco depois da meia-noite. Eu estava na cozinha, limpando metodicamente as bancadas de mármore, o cheiro de limão e água sanitária um contraponto limpo e forte à doçura persistente do bolo de aniversário.

Era o aniversário de Heitor. Eu tirei a tarde de folga do escritório de arquitetura, aquele onde eu era sócia júnior antes de deixar minha carreira em segundo plano para apoiar a dele. Passei horas assando seu bolo red velvet favorito, aquele que a mãe dele costumava fazer. Eu tinha preparado um jantar completo, os pratos agora frios e intocados no fogão.

Ele prometeu estar em casa às sete. "Um brinde rápido com a equipe para comemorar a fusão, depois sou todo seu, amor", ele havia mandado por mensagem.

Esperei até as onze antes de ver as fotos. Não dele, mas de uma das amigas de Kátia no Instagram. Um carrossel de fotos de um bar chique no Itaim: Heitor com o braço em volta de Kátia enquanto ela soprava uma única vela em um cupcake, Heitor rindo enquanto ela divertidamente melava o nariz dele com cobertura, toda a equipe erguendo taças de champanhe em um brinde.

Ele entrou na cozinha agora, afrouxando a gravata, a imagem do sucesso cansado. Ele cheirou o ar.

"Você fez bolo?", ele perguntou, o tom enganosamente casual. Ele foi até o bolo, ainda perfeito sob sua cúpula de vidro, e mergulhou um dedo na cobertura de cream cheese.

Ele se virou e, antes que eu pudesse reagir, passou o creme branco na minha bochecha. Era um gesto que deveria ser divertido, íntimo. Anos atrás, eu teria rido.

Esta noite, eu apenas fiquei parada.

"É red velvet", eu disse, minha voz sem emoção.

"Você que fez?"

"Sim."

Ele lambeu a cobertura do dedo, depois franziu a testa. "Está meio empelotado. E a cor está estranha. Parece mais um tijolo triste do que veludo."

A antiga Elisa teria defendido seus esforços, lembrando-o de que passou horas tentando acertar, que a intenção é que valia. A nova Elisa simplesmente pegou um guardanapo, limpou a cobertura do rosto e o jogou no lixo. Não havia sentido em discutir uma crítica que não era sobre o bolo.

Ele me observou, uma pequena linha de preocupação aparecendo entre suas sobrancelhas. Ele esperava uma reação, uma faísca para acender seu jogo favorito de brigar e fazer as pazes. Ele não conseguiu nada.

"Ei", ele disse, a voz suavizando. A fase do bombardeio de amor estava prestes a começar. "Eu trouxe uma coisa para você."

Ele tirou um saco de papel branco de sua pasta. "Seu frango apimentado favorito daquele lugar famoso no Centro."

"Eu vi no story da Kátia", eu disse, minha voz desprovida de acusação. Era uma simples declaração de fato.

Seu rosto se contraiu por uma fração de segundo. "Certo. Bem, eu guardei um pouco para você. Deixa eu só esquentar."

Ele levou o recipiente para o micro-ondas, atrapalhando-se com os botões como um turista em sua própria cozinha. Um momento depois, ele desapareceu em nosso quarto para se trocar. Ouvi o chuveiro ligar.

Um cheiro de queimado começou a encher a cozinha. O micro-ondas apitava insistentemente, mas o chuveiro ainda estava ligado. Com um suspiro, fui até lá e abri a porta. Uma nuvem de fumaça acre saiu. Ele colocou o recipiente de plástico por cinco minutos em vez de um.

Quando me estiquei para desligar o aparelho fumegante, o celular dele, deixado na bancada, acendeu. Era uma mensagem de texto de Kátia.

"A noite de hoje foi perfeita. Mal posso esperar para tornar todos os seus futuros aniversários tão especiais. "

A porta do banheiro se abriu. Heitor surgiu, secando o cabelo com uma toalha, uma camisa limpa jogada sobre o ombro. Ele me viu parada perto da bancada, o celular dele iluminado na minha mão. Seu rosto escureceu.

"O que você está fazendo, bisbilhotando meu celular?", ele rosnou, caminhando em minha direção.

Ele se moveu rápido demais. Ou talvez eu tenha me movido devagar demais, meus membros ainda pesados com o cansaço do dia. Ele arrancou o celular da minha mão, seu ombro batendo no meu.

O impulso me fez tropeçar para trás. Minha mão enfaixada, a que eu queimei na grade do forno enquanto tirava seu bolo estúpido, atingiu a panela de sopa agora coagulada no fogão.

A panela virou.

Uma onda de líquido escaldante e gorduroso desceu pelo meu braço. Uma dor lancinante, branca e quente, disparou do meu pulso ao cotovelo. Eu gritei, um som agudo e involuntário.

A panela caiu no chão, espirrando sopa pelos azulejos impecáveis que eu acabara de limpar.

Heitor não olhou para mim. Ele não olhou para o meu braço, que já estava ficando vermelho e com bolhas.

Ele estava olhando para o celular, o polegar furiosamente apagando a mensagem de Kátia.

            
            

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