Entre o comando e a Rendição
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Capítulo 2 Jamile

**JAMILE - CAPÍTULO 1**

*(antes de Brasília, só eu, do começo até agora)*

Olá, meu nome é Jamile.

Meu cabelo é tão negro quanto uma noite sem lua, liso e pesado, caindo em cascata até a cintura, sempre parecendo ter pressa de tocar o chão. Minha pele, marcada pelo calor do sol, possui um dourado persistente que resiste à passagem do tempo, mostrando que o sol me deixou suas marcas. Minhas sobrancelhas são grossas e imponentes, como se fossem a moldura de um quadro que não pediu licença para existir. Minha boca, cheia e vibrante, quase sempre decorada com um batom em tons de pêssego, reflete que aprendi a parecer pronta, mesmo quando o cansaço tenta me derrubar.

Quando prendo meu cabelo em um rabo de cavalo alto, não é por vaidade; é como se fosse uma bandeira, um grito por foco e disciplina. É um lembrete que carrego comigo todos os dias: nada me quebra sem luta.

Ouso dizer que meu perfume é suave, minhas roupas, firmes. Uso uma saia que valoriza minha silhueta e uma camisa justa que não se desculpa por ocupar espaço. Meu relógio é discreto, e uso salto médio. Cada detalhe em meu vestuário carrega uma mensagem. Não nasci forte; tornei-me forte.

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**Os 12 anos que me partiram ao meio**

Meu mundo se despedaçou cedo. Eu tinha apenas 12 anos quando perdi meus pais em um trágico acidente de carro. Era um sábado qualquer, até o telefone tocar e a correria tomar conta da sala, envolvendo tudo em um silêncio pesado. A cena do par de chinelos do meu pai virados na porta da cozinha ficou gravada na minha memória uma lembrança banal que se transformou em uma cicatriz incurável

Durante o velório, estive em choque total. Não derramei uma lágrima sequer; meu corpo parecia ter esquecido como chorar. Mas três dias depois, numa manhã fria, desabei no azulejo da casa da minha avó. E foi no colo dela que recebi minha primeira lição importante:

"Chora, minha filha. Água parada apodrece."

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**O colo que me reergueu**

Meus avós, Vó Zuleide e Vô Agenor, tornaram-se o meu universo. Ela, pequena e firme, era capaz de preparar verdadeiros milagres na cozinha com apenas farinha e sal. Ele, um homem de costas largas e sabedoria em frases incisivas, dizia: "Não deve, não teme." Essas palavras se tornaram a minha primeira constituição moral, muito antes de eu conhecer os textos legais.

Aos 13 anos, já conseguia cozinhar arroz soltinho e atravessar a cidade de ônibus sozinha. O vazio deixado pela saudade se manifestava em simples momentos, como o cheiro do travesseiro. Meu avô costumava me buscar na escola com pães de queijo embrulhados em guardanapo e café numa garrafinha: "Pra não estudar de barriga vazia."

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**Adolescência como trincheira**

Com 14 anos, percebi que responder "NÃO "a uma pergunta não era ser ríspida era um ato de defesa. Aos 15, eu me tornei aquela aluna que emprestava canetas e oferecia ombro amigo para amigas que choravam. Li Carolina Maria de Jesus antes de pegar em um livro sobre a Constituição. Rapidinho compreendi que tanto ela quanto a Constituição falavam sobre o mesmo assunto: dignidade e sobrevivência.

Aos 16 anos, desenvolvi meu ritual de resistência: unhas bem feitas numa sexta-feira, óleo no cabelo, escrivaninha sempre organizada. Olhando-me no espelho, repetia para mim mesma: "Você vai sair daqui com um diploma."

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**O amor que virou cicatriz**

Eu realmente desejava acreditar no amor, e aos 17 anos, me deixei levar pela crença, mas, infelizmente, de forma errada.

Ele se chamava Gustavo: bonito, inteligente e com um sorriso acessível. Nos primeiros momentos, era tudo carinho flores furtadas do vizinho, mensagens trocadas na calada da noite e promessas ingênuas anotadas em cadernos. Mas logo percebi que promessas podiam se transformar em correntes pesadas.

O que começou como cuidado logo se transformou em cerco. "Onde você está? Com quem está? Por que demorou a responder?"

A primeira vez que ele levantou a voz, engoli em seco. Na primeira vez que segurou meu braço com força, desculpei seu ato. E na primeira vez em que me empurrou contra a parede, menti para mim mesma.

Porém, quando consegui dizer "não", ele não ouviu. Não ouviu meu choro, minha raiva ou nada que tentasse expressar. Aquele episódio se tornou uma tatuagem na minha alma. Aprendi de maneira dolorosa que amor mal dado pode ser sinônimo de agressão, invasão e a pior forma de prisão.

Decidi, então, fazer um pacto comigo mesma: nunca mais seria refém. Minha pele se tornou uma muralha, e meu coração, uma fortaleza. Aprendi a dizer "não" em um piscar de olhos, e entendi que a submissão só existe quando é uma escolha consciente.

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**A obsessão pelo diploma**

Com 17 anos, consegui passar no vestibular, mesmo estudando em uma mesa de plástico, com a panela de pressão apitando e o vizinho ouvindo música alta. Escolhi Direito. Quando vi meu nome na lista de aprovados, foi como se eu pudesse ouvir a voz da minha mãe novamente, apenas que agora ressoava na alegria da minha avó, que chorava emocionada. Meu avô, por sua vez, fez questão de disfarçar os olhos marejados.

Na faculdade, transformei-me em aço. Aos 18 anos, fiz minha primeira petição em um júri simulado. Com 19, estagiei na defensoria pública, onde conheci histórias de mulheres fugindo de maridos violentos e crianças tratadas como mercadorias pelo sistema. Observei tudo isso, absorvi a intensidade e deixei que a raiva se tornasse combustível para minha luta.

Com 20 anos, já era responsável por pagar contas, ajudava em casa e carregava meu superpoder: a capacidade de detectar alguém egoísta em apenas três frases. Aos 21, recusei um amor insinuante antes que ele se tornasse uma nova prisão. Anotei no meu caderno: "O amor que vale a pena não te maltrata."

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**O corpo da mulher e a armadura**

Aos 22 anos, adquiri meu primeiro terno preto. Não se tratava apenas de tecido; era uma armadura. Ingressando em uma ONG dedicada a orientar mulheres, ouvi relatos que cortavam como faca e refletiam realidades cruelmente dolorosas. Comecei a entender que a lei não é apenas uma coleção de artigos.

Aprendi a dançar sozinha enquanto arrumava a cama, a rir alto sem pedir licença, a ser prática sem perder a poesia que habita em mim.

Sou filha da tragédia e neta da sobrevivência. Sou uma mulher de aço.

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**A Virada: Brasília**

Um certo dia, um professor me indicou para um grande escritório na capital do país. Ele me disse que eu tinha sabedoria e coragem. A boa notícia chegou em uma terça-feira. Na quarta-feira, já comecei a me organizar: tinha que encerrar meu estágio, separar documentos importantes, procurar um novo apartamento, levar o terço do meu avô, o retrato dos meus pais e o brinco da minha aprovação.

Na despedida, tivemos um jantar simples, mas cheio de afeto: arroz, feijão grosso e bife acebolado. Minha avó sorriu ao me ver partir e meu avô ergueu uma garrafa de Coca-Cola, brindando à minha nova jornada. Ele me disse: "Vai em frente. A estrada se faz ao andar. A gente empurra daqui com bons pensamentos."

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**Partida**

Organizei minha vida em caixas, levando apenas o que era realmente essencial: minhas lembranças, os ossos da minha história, e uma boa dose de disciplina. Fiz as unhas de vermelho, como um lembrete da força que carrego. Olhando para o espelho, escrevi com batom: "Guerreira de esmalte em dia." Uma declaração sobre a mulher que sou e como enfrento os desafios.

Na última noite antes de partir, sentei-me no quintal com meus avós. O céu estava cheio de estrelas, e eles contaram, mais uma vez, como se conheceram em um forró. Rimos juntos, e percebi que o amor pode ser isso: a repetição de histórias que, mesmo contadas várias vezes, nunca perdem a magia.

Na manhã seguinte, preparei-me para a viagem com um revigorante banho frio, seguido de um hidratante de baunilha que deixava minha pele suave e perfumada. Prendi meu cabelo em um rabo de cavalo alto e vesti uma saia creme, uma blusa preta e um scarpin que ainda estava sendo parcelado. Passei um batom pêssego, dando um toque alegre ao meu visual. Minhas malas estavam prontas, apenas aguardando o momento da partida.

Enquanto me preparava para deixar a casa, minha avó colocou um biscoito de polvilho na minha bolsa e disse: "Quando a saudade apertar, mastigue devagar." Uma frase simples, mas que carregava um profundo significado. Meu avô, sempre pragmático, me entregou um maço de notas dobradas e disse: "Para imprevistos." Um gesto de cuidado para o desconhecido que estava por vir.

No portão, as lágrimas vieram sem que eu sentisse vergonha. Enquanto o carro começava a se afastar, tudo à minha volta parecia encolher: a rua, as casas e meus avós se tornaram pequenos pontos no retrovisor. Mas eles sempre estaríamos presentes em meu coração.

Na rodoviária, o ar estava impregnado com o aroma do pastel frito e a correria das pessoas ao redor. Mastiguei um biscoito lentamente, e o sabor me transportou para a minha infância, um tempo de segurança e inocência. Pela primeira vez, percebi que o futuro tinha o gosto de algo que poderia temperar do meu jeito.

Subi os degraus do ônibus e encostei a testa na janela, observando o mundo lá fora. Brasília me esperava.

Ainda não havia chegado ao meu novo destino, mas era exatamente nesse espaço intermediário que eu desejava estar: no meio do salto, confiante de que não cairia. Não estava caindo; estava pousando.

Eu sou Jamile.

E a partir de agora, a história é inteiramente minha.

            
            

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