Senti o peso da mochila em um ombro e a mala batendo contra o outro, e, nessa mistura de sensações, me senti estranhamente ridícula de feliz, sorrindo como uma garota que acabou de ganhar uma casa de boneca. Só que a minha casa era de gente grande; ainda invisível, mas tão minha quanto a chave de metal frio que estava guardada no bolso.
Chamei um carro de aplicativo. O motorista tinha cara de quem já rodou muito por aí, voz de locutor de rádio noturno e mãos queimadas de sol apoiadas no volante. Ele não puxou conversa, e eu agradeci silenciosamente. Fiquei com o olhar fixo na cidade que despertava. Os eixos pareciam riscos de régua no chão, as pequenas vias cortando caminho como se fossem passagens secretas, e os prédios se erguendo em pilotis, todos exibindo uma pose de modernismo eterno. Repeti para mim mesma como um mantra: "É aqui, Jamile. Agora é aqui."
A portaria do prédio era simples, de construção antiga, com azulejos bege descascando nos cantos, aquele tipo que já passou por mil mudanças, choros e novos começos. O porteiro segurava um copinho de café e bocejava de forma sonolenta.
- Apartamento 305? - ele perguntou.
- Isso.
- Aqui está a chave. Só cuide que o elevador às vezes decide parar no segundo andar.
Recebi a chave. O chaveiro era um tanto ridículo: uma casinha de plástico, comprada na rodoviária, apenas para me lembrar que, sim, eu estava prestes a abrir uma porta que era minha. Entrei no elevador, que protestou como se fosse um joelho velho, e ri sozinha. Eu também estava cansada, mas me sentia renovada.
Quando dei o primeiro passo dentro do apartamento, a porta se abriu com um estalo e um aroma me envolveu: cheiro de tinta velha, um pouco de poeira, mas nada insuportável. Era o aroma de um lugar aguardando por meus passos. A luz da manhã irrompeu sem cerimônia, atravessando a janela e iluminando a sala. Apertado, pensei a princípio, mas logo corrigi: Aconchegante. Um espaço pequeno, assim como minha paciência para lidar com pessoas mal-educadas: limitado, mas suficiente.
Na sala, havia dois quadrados de espaço e uma janela generosa, dessas que parecem deixar o mundo entrar. A cozinha americana exibia um balcão de mármore gasto e um fogão de duas bocas magricela, que parecia implorar por comida quente. A geladeira, pequenininha, suspirava a cada liga e desliga. No quarto, as paredes brancas pediam quadros; um guarda-roupa de duas portas que fechava com um toc quase terapêutico. O banheiro era simples: um box de acrílico e um chuveiro elétrico com aparência de traíra, daqueles que decidem sozinhos se vão ser verão ou geleira. Testei. Saiu morno. Fiz as pazes com Deus.
Caminhei de um lado para o outro, com as mãos na cintura. Todos nós fazemos isso quando entramos em um espaço novo: medimos se nossa alma cabe. A minha coube, folgada até.
Abri as janelas e deixei a rua entrar. O som de ônibus tomando a esquina, um cachorro latindo como se fosse o dono do quarteirão, o rádio tocando baixo em alguma cozinha vizinha. O sol deslizou pela parede e consacrou o espaço comigo. Tirei da bolsa o bilhete que minha avó tinha me escrito: "Quando bater a saudade, mastiga devagar." Colei na geladeira com durex e abri o potinho dos biscoitos de polvilho. Comi um em pé, rindo da minha própria felicidade.
Era hora do ritual. Comecei a varrer o chão, usei um pano com cheiro de pinho e passei um pano úmido em tudo. Coloquei no celular uma playlist com sons de chuva pois meu cérebro funciona melhor com barulhos inventados. Lavei a pia, alinhei os talheres que trouxe em um potinho e dei um trato rápido nos pratos que ainda estavam empoeirados. O escorredor rangeu como um gato magoado, mas sobreviveu.
Abri caixas: roupas, livros e lembranças. Montei um pequeno altar no quarto: foto dos meus pais, o terço do meu avô, um coqueiro de plástico que ganhei de uma vizinha antiga e a caneta azul da aprovação no vestibular. Ao lado, coloquei um copo de plástico com tampa, que virou um vaso improvisado. Prometi a mim mesma que compraria uma suculenta assim que sobrasse dinheiro.
Preparei um café coado no pano que minha avó me deu, e o aroma invadiu a cozinha com um toque de carinho. Tomei em pé, encostada no parapeito, observando o prédio em frente, onde roupas estavam estendidas no varal. Um lençol desenhado com abacaxis balançava ao vento. Naquele momento, Brasília parecia quase uma cidade pequena. Quase chorei, mas optei por rir e dançar sozinha, batendo o pé no chão de cimento, com o coração acompanhando o ritmo.
No quarto, arrumei o lençol favorito na cama, estiquei bem e alinhei o travesseiro. Pendurei na porta do guarda-roupa a saia creme e a blusa preta, deixando o scarpin embaixo, já pronto para o dia seguinte. Os livros estavam alinhados na prateleira: a Constituição, Processo Civil, um romance da Conceição Evaristo, meu caderno cheio de post-its e metas rabiscadas.
Peguei o caderno e fiz a Lista Brasília:
- Comprar cabides (muitos).
- Filtro de água ou galão? Decidir.
- Pano de prato (pelo menos três).
- Tapetinho pro banheiro.
- Extensão e benjamim (tomadas são conspiradoras).
- Sabonete cheiroso de vitória.
- Vaso de suculenta (pra fingir que sei cuidar).
Enviei uma mensagem para os meus avós dizendo: "Cheguei. Já estou amando meu cubículo." Em questão de segundos, recebi um áudio da minha avó: "Graças a Deus, minha filha! Beba água, abra a janela, coloque o pé no chão e agradeça." Imediatamente, coloquei o pé no chão e fiz a minha parte, agradecendo. Meu avô respondeu com um simples: "👍🏼 Orgulho." Senti a emoção tomar conta, e não consegui conter as lágrimas de alegria enquanto sorria.
Decidi sair para fazer compras do básico. Fui até a padaria na esquina e, ao entrar, vi o balcão de inox brilhando e o cheiro do pão quentinho exalando no ar. Comprei meia dúzia de pães, manteiga e queijo minas, que parecia uma promessa de sabor. Depois, me dirigi ao mercadinho próximo, onde comprei sabão em pó, detergente, esponjas, pregadores e até um tapetinho azul para o banheiro - não era exatamente a cor que eu gostaria, mas era o que tinha disponíveis. Quando cheguei ao caixa, a moça me perguntou:
- Você se mudou ontem?
- Hoje, já faço parte do bloco.
Trocamos risadas, cúmplices desse novo começo.
Voltei para casa, carregando as sacolas que batiam contra meu joelho, subindo as escadas por conta do elevador que estava "de birra." Assim que cheguei, peguei a manteiga, passei no pão e comi em pé mais uma vez. A toalha de mesa, uma opção feia que custou cinco reais, já dava um outro aspecto à cozinha, transformando aquele espaço em um lar.
No final da tarde, deitei no chão da sala com os braços abertos. O teto me encarou de volta enquanto o vento deslizava suave pelo meu braço. A felicidade era tão intensa que quase doía perto do coração. Brasília parecia um lugar cheio de oportunidades: trabalho, estudo, novas pessoas, caminhos a explorar. Meu pensamento, como sempre, estava adiantado. Tuguei de volta: calma, Jamile. Hoje é dia de desfrutar da casa. Amanhã será o mundo.
Preparei-me para o banho, e o chuveiro funcionou perfeitamente. Saí dele com o cheiro do sabonete barato, que competia com qualquer perfume caro. Vesti um short velho, prendi o cabelo e passei um creme na pele. Ao me olhar no espelho, vi uma imagem cansada, mas completa. Nova.
Quando o sol se escondeu atrás dos prédios, Brasília se iluminou com um tom dourado. Os ipês amarelos lá embaixo pareciam me dar as boas-vindas, como se fossem fogos de artifício em forma de flores. Tirei uma foto e enviei para os meus avós. Minha avó respondeu com um coração, enquanto meu avô perguntou: "O chuveiro é quente?" Respondi enviando uma foto do vapor no espelho. Ele respondeu com uma risada em áudio.
À noite, deitada sobre o colchão, consegui ouvir a cidade pulsando. Os vizinhos riam, as portas batiam e os ônibus passavam. Pela primeira vez em muito tempo, meu coração também respirou junto com aquele ritmo.
O último pensamento antes de adormecer foi simples, sem qualquer tipo de poesia: "Eu consigo."
Brasília me conquistou com o primeiro café, o segundo pôr do sol e a certeza de que até um apartamento pequeno pode ser o abrigo de uma coragem imensa.