- Doutor, trouxe a petição inicial do caso da TechNorte - disse ela, colocando o arquivo sobre a mesa com a delicadeza de quem deixava um gato agitado em um sofá.
Puxei a pasta em direção a mim e, após uma rápida olhada, percebi que não levaria muito tempo para identificar os problemas.
- Beatriz... - comecei, mantendo um tom calmo, quase amigável. - Você escreveu "Excelentíssimo Juiz de Direito da 5ª Vara". Na verdade, nosso caso tramita na 3ª Vara Empresarial. Estamos começando mal.
Ela engoliu em seco, visivelmente nervosa.
Virei a primeira página e imediatamente percebi mais falhas: o cabeçalho apresentava uma margem desalinhada, a fonte era a errada, e o espaçamento era incerto. Lembrei-me de textos mal elaborados que surgem nas manhãs de domingo após uma noite de ressaca.
- A qualificação do autor... está incompleta. Onde está o CNPJ? Onde está o e-mail, conforme exige o art. 319 do CPC? - minha voz tinha um tom firme, mas não se elevou.
Virei para a segunda página.
- Fatos dispostos de forma cronológica? Não! Você começou pelo e-mail de cobrança de março e só depois mencionou o contrato de 2022. Isso está tão desorganizado que mais parece um episódio de uma novela com flashbacks mal executados. O juiz não é um espectador; ele quer a linha do tempo clara.
Passei para a terceira página.
- Fundamentação jurídica... - pausei por um momento, como se estivesse proferindo um veredito. - O caso trata da responsabilidade do fornecedor de software. Você mencionou o Código Civil quando o CDC poderia resolver a metade do problema. Onde estão o art. 14, o art. 6º, inciso VIII? Onde está a tutela de urgência do art. 300? - levantei o olhar para ela. - E essa jurisprudência citada aqui é de 2014. Jurisprudência ultrapassada é como prazo vencido: não serve para nada.
Ela ficou pálida.
- Doutor, eu...
- Anexos - continuei, ignorando suas tentativas de defesa. - Onde está a procuração? E o contrato social? E o comprovante do erro do sistema que causou a falha na plataforma do cliente? Você apenas descreve, mas não apresenta provas. Um processo não é uma crônica, Beatriz.
Virei para o final da pasta.
- E os pedidos? Quão vaidosos! "Requer o que for de direito" não tem valor aqui. Quero os pedidos organizados: 1) inversão do ônus da prova; 2) obrigação de fazer em 48 horas, sob pena de multa diária; 3) danos materiais com base nos relatórios X e Y; 4) danos morais, se aplicáveis, e se for solicitar, precisam de fundamentação; 5) valor da causa - que você simplesmente esqueceu. - Fechei a pasta de uma vez. - E quanto ao fecho? "Nestes termos, pede deferimento" e... nada mais. Nem local, nem data, nem número de OAB. Esse tipo de deslize nos humilha diante do cartório.
O silêncio se instalou. O peso do meu relógio de ouro se fez sentir, e a cidade lá fora, vista através da janela, parecia ter perdido a voz.
- Doutor, eu posso corrigir isso. É que eu assumi ontem e a doutora Letícia...
- A doutora Letícia não assina no meu lugar - interrompi, firme. - Você trabalha pra mim. E aqui, seguimos regras.
Levantei-me, fui até o quadro de vidro na parede e com uma caneta escrevi lentamente, com letras firmes, sem desviar o olhar de onde estava escrevendo:
**CHECKLIST ANDRADE - INICIAIS CIVIS**
1. Foro e Vara corretos + distribuição.
2. Qualificação completa (CNPJ/CPF, e-mail, endereço).
3. Procuração e documentos essenciais anexados e numerados.
4. Fatos: cronologia limpa.
5. Causa de pedir próxima e remota.
6. Fundamentação: artigos certos (CDC/CPC) + doutrina recente.
7. Jurisprudência dos últimos 3 anos, ementa clara.
8. Pedidos numerados + valor da causa.
9. Tutela de urgência quando houver risco e probabilidade.
10. Fecho, local, data, OAB.
11. Formatação padrão do escritório.
12. Revisão final: gramática, citações, anexos.
Virei-me de volta para ela.
- Isso - apontei para o quadro - é o mínimo exigido. Não é algo que deva ser visto como diferencial, nem algo que surpreenda: é apenas a porta de entrada. Se não fizer isso, nem venha bater à minha porta.
Beatriz assentiu, seus olhos expressavam a mesma sensação que se tem ao levar um banho de água fria.
- Você vai pegar essa peça, reescrever tudo do zero, anexar o que falta, atualizar as teses, trazer duas jurisprudências do STJ e uma do TJDFT que se apliquem exatamente a este caso. Vai numerar os pedidos, calcular os prejuízos conforme o relatório sobre a queda e estabelecer um valor da causa que faça sentido. Você tem quarenta minutos.
Os olhos dela se arregalaram.
- Quarenta, doutor?
- Trinta minutos seria uma ofensa - respondi, austero. - Quarenta minutos é uma generosidade. E, por favor, dispense as lágrimas. Quem chora aqui é somente o protocolo quando recebe um carimbo errado.
Beatriz assentiu rapidamente com a cabeça e saiu do ambiente, tropeçando no próprio pé. A porta se fechou atrás dela, e fiquei apenas com a pasta nas mãos, sentindo o odor desagradável do papel se espalhar no ar. No automático, passei um pouco de álcool em gel, um hábito já enraizado, e então me sentei.
Foi então que Renata apareceu, silenciosa e reservada, trazendo consigo duas pilhas de processos e uma xícara de café quente.
- A Beatriz vai acabar desmaiando no corredor - ela comentou ao deixar o café sobre a mesa.
- Se isso acontecer, alguém deve ir buscar água. E depois manda ela voltar para finalizar o que começou - respondi, sem mostrar qualquer traço de humor.
- Você quer que eu solicite os prints para o cliente da TechNorte?
- Já deveria estar fazendo isso - retruquei, voltando a atenção para o computador. - E Renata... manda um recado para toda a equipe: o padrão mínimo não é um elogio. É uma obrigação.
Ela se retirou e eu abri o e-mail. Encontrei uma cobrança de um cliente, um convite para uma palestra e uma ameaça de ação judicial da concorrência. Era o que costumava encontrar nas primeiras horas do meu dia. O telefone tocou e, após o terceiro toque, atendi.
- Andrade.
Do outro lado da linha, um empresário que acredita que levantar a voz torna suas razões mais válidas. Deixei que ele despejasse sua ansiedade, seus números e toda a pressão que estava sentindo. Quando finalmente fez uma pausa para respirar, aproveitei para intervir.
- Pare de gritar e anote o que eu vou te dizer - falei, utilizando um tom que costumo usar para corrigir as posturas de pessoas mais imponentes. - Vamos firmar um acordo agora para não enfrentarmos problemas na justiça depois. Me mande o contrato em PDF e em Word, além das mensagens trocadas e uma proposta fechada com multa escalonada. Sem esses documentos, não haverá reunião.
Desliguei a ligação. Essas mensagens eu consigo gerenciar com facilidade, quase de olhos fechados. Não é um talento inato, mas sim uma habilidade que eu desenvolvi.
Olhei para o relógio e me dei conta de que haviam se passado dezenove minutos. Bati a ponta dos dedos na mesa, demonstrando minha impaciência. A porta se abriu lentamente.
Beatriz retornou, com o rosto tenso, segurando um documento impresso que, desta vez, estava preso com um clipe e não com a capa azul - parecia ter compreendido que no meu escritório o papel deve ser discreto.
- Coloque aqui - apontei para a mesa.
Li o documento em silêncio. Agora sim, estava mais completo: 3ª Vara Empresarial, qualificação detalhada, a linha do tempo cobria os fatos de janeiro a março, tudo bem estruturado. A fundamentação incluía o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e o Código de Processo Civil (CPC), bem como a tutela de urgência com a probabilidade do direito e o perigo de dano. Incluía jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2023 e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) de 2024. Os pedidos estavam numerados e o valor da causa havia sido calculado com base nos relatórios. A peça ainda apresentava local, data e o número da OAB, tudo em formatação padrão.
Levantei o olhar após a leitura.
- Melhorou. Mas ainda tem falhas - deslizei o dedo sobre o papel. - Falta um sumário, já que o documento possui mais de 20 páginas. E essa frase aqui precisa de correção; petição não deve prometer, deve afirmar. Mude para o presente. Arrume tudo e protocole ainda hoje. E não se esqueça de mandar para o meu e-mail tanto em PDF quanto em Word. Se eu receber apenas em PDF, você volta. Se vier só em Word, também volta. E se a fonte estiver desconfigurada, você volta duas vezes.
Beatriz respirou profundamente pela primeira vez desde que entrou.
- Sim, doutor. Obrigada pela... orientação.
- Isso não foi uma orientação, foi uma ordem - respondi de forma direta, mas com um meio sorriso que quase se formou em meu rosto. - Agora vá trabalhar.
Ela saiu novamente. Renata reapareceu, como se tivesse algum tipo de sensor que a alertasse.
- Gostaria que eu fizesse uma cartilha com esse checklist para todo mundo?
- Não. Quero que todos decorem. Cartilhas se tornam apenas pesos de papel.
Peguei meu casaco e caminhei até a janela. Brasília brilhava sob o céu de um azul quase surreal. Por alguns segundos, visualizei a cidade lá embaixo, andando de forma despretensiosa, só para recordar a sensação de ser um simples ninguém. É uma sensação saudável.
Quinze minutos depois, meu telefone vibrou. Beatriz havia enviado a peça revisada e o print do protocolo. Conferi e estava tudo certo.
Respondi com um breve "Recebido. Não se esqueça do prazo do agravo caso a tutela seja indeferida."
Ela retornou com um "Sim, doutor 🙏".
Desativei a visualização de emojis. No meu escritório, orações não substituem prazos.
Renata entrou novamente.
- A agenda da tarde está assim: reunião com a SunWay às 14h, uma chamada com o Sérgio às 16h e o padrinho confirmou que a nova estagiária chegará amanhã cedo.
- Anota tudo - falei, sem desviar o olhar. - A partir de agora, toda peça precisa passar pelo checklist. Toda, sem exceção. Quem errar, será submetido a treinamento. E quem repetir o erro, precisará sair.
- E quanto à nova estagiária?
- A mesma regra. Nome não garante cadeira aqui.
Renata assentiu em compreensão. Saí da janela e retornei à mesa. As coisas estavam se organizando. Gosto de ver assim: ordem, ritmo e resultados. Meu escritório não é uma sala de aula. É uma trincheira. Quem entra precisa aprender rapidamente ou aprende saindo.
Peguei uma caneta, assinei três despachos e fechei a pasta da TechNorte. O relógio marcou meio-dia. Solicitei o almoço, sem mais delongas. Enquanto aguardava, abri a agenda do dia seguinte. Cada item estava em seus devidos lugares.
Arrogante? Eu prefiro chamar de padrão. Quem confunde firmeza com grosseria nunca carregou um prazo pesado nas costas.
Amanhã teremos novos rostos. O mundo gira, mas eu não. Quem quiser se manter aqui, terá que aprender a girar na minha órbita.