Sempre gostei de observar as pessoas: suas expressões, fisionomias e tudo que pudesse me ajudar a revelar quem, de fato, elas eram. Dediquei-me intensamente, e cada passo da minha trajetória exigiu esforço. Cheguei onde estou por mérito. Sou a melhor no que faço, e não deixo que esse território masculinizado me diminua. Sou dona de mim. Uso tudo ao meu alcance para conseguir o que desejo, sem perder o poder que possuo.
Há cinco dias, fui informada de que seria designada para uma nova missão, a mais importante da minha carreira. Se capturasse o responsável, poderia escolher qualquer cargo, em qualquer lugar. Um novo serial killer estava aterrorizando a Toscana, matando inocentes sem um padrão lógico, como todo psicopata. A sede da investigação: Florença.
Enfrentei um voo de mais de quatro horas. Minha mesa me aguardava com tudo pronto para o início do trabalho. Já havia me inteirado do modus operandi dele, estudei-o por dias, e cada detalhe estava gravado em minha mente. Acredito que ele escolha as vítimas antecipadamente e, de alguma forma, as conheça. Não há sinais de arrombamento. A forma como ele as deixa indica que é muito mais perigoso do que todos imaginam.
Esse "unsub" não descarta suas vítimas. Ele as mata lentamente, torturando-as de forma intensa e cruel. Sempre deixa um vídeo propositalmente no aparelho de DVD, mostrando-o amarrando a vítima na cama, aterrorizando-a por horas, obrigando-a a fazer tudo o que lhe vem à mente - sem padrão, sempre no improviso. Quando está no controle e a vítima admite merecer aquilo, ele a estrangula e assiste à agonia final.
Mas o que mais intriga é o cuidado com que monta a cena. Após o assassinato, ele dá banho nelas, perfuma seus corpos com os mesmos óleos corporais, maquia-as, pinta suas unhas, veste-as como prostitutas e posiciona os corpos impecavelmente em algum cômodo visível da casa. É meticuloso. Por isso, os jornais e blogs o apelidaram de "O Assassino das Bonecas". Eu, particularmente, detesto quando dão nomes a psicopatas - isso alimenta o ego doentio deles, gera teorias, perseguições e até fã-clubes. E esse foi o maior erro: não controlar a imprensa.
Bati as pontas dos dedos no banco do carro. As luzes de Florença brilhavam sob o céu noturno como joias em um manto negro, olho para o relógio em meu pulso, pouco mais de dezenove horas, respirei fundo, tentando organizar os pensamentos. Sorte minha ter optado por uma blusa branca de cetim leve, acompanhada de um conjunto de saia e terno preto. Coloquei os óculos escuros para não encarar o sol diretamente. Suspirei alto. O taxista que deveria me levar até minha nova casa precisou mudar a rota, outro corpo havia sido encontrado. Eram tantas vítimas ao longo dos anos que me pergunto como não o pegaram antes.
Três anos. Esse foi o tempo que o deixaram livre. Percebi que a inconsistência entre os intervalos das mortes o tornava ainda mais perigoso. Começou com quatro meses entre os crimes... agora, temos um corpo novo a cada semana. Outro padrão: cada vítima era morta de uma forma diferente, mas havia uma técnica comum. E algo a mais, cartas de tarô, desenhadas à mão, sombrias e únicas, deixadas ao lado de cada corpo.
Vinte e nove vítimas, todas assassinadas com o mesmo padrão. Nenhuma testemunha. Nenhuma pista concreta. Exceto por uma: a estética da morte, a arte, a composição das cenas, o respeito quase reverente pelos corpos... Era mais do que um psicopata. Era um artista da morte. Peguei o relatório de novo. As anotações que escrevi à mão estavam circuladas, rabiscadas, destacadas com raiva. Algo não se encaixava. Algo me escapava.
"Perfis fragmentados, motivação difusa e execução perfeita."
Apenas percebi que o táxi havia parado quando o motorista me chamou pela segunda vez, "chegamos moça... Moça? Já chegamos", paguei a corrida e o motorista desceu para ajudar com as malas. "Você está obcecada demais!" A voz em minha mente me tirou do transe, observei ao redor: a cena era um verdadeiro espetáculo. Faixas amarelas delimitavam a área do crime, mantendo os curiosos afastados. A casa era enorme.
Aproximei-me, mostrei meu distintivo e pedi que colocassem minhas malas na viatura. Peguei apenas minha maleta prateada com o kit forense, vesti o jaleco azul e arrumei o fio da câmera no pescoço. Respirei fundo. Ao entrar, o cheiro forte de alvejante me atingiu como um soco.
Segui as vozes até a sala. Agentes fotografavam e recolhiam possíveis evidências, mas se conhecessem de fato o criminoso, saberiam que era perda de tempo. Como nas outras cenas, havia fortes indícios de que não encontrariam nada.
Encostei-me à parede e ouvi a conversa.
- Como nas outras cenas, ninguém ouviu ou viu nada - comentou uma agente de cabelo curto.
- Ele está ficando mais ousado. Veja como posicionou essa moça... como se fosse uma boneca - disse outro, a única diferença entre as bonecas e as vítimas, eram os olhos esbranquiçados pós mortem - E foi em apenas seis dias. O cerco está se fechando, ele sabe disso. Vai cometer erros.
- Aí é que você se engana - interrompi, firme. Todos se viraram - Ele não está sendo ousado. Psicopatas não jogam dados. Eles planejam cada detalhe. Ele sabe que o estamos caçando, e aprecia o jogo. Vê-lo assim, nos confundindo, é parte da sua diversão. E o cheiro de alvejante que inunda a casa? Significa que qualquer evidência será inválida. Vocês ainda esperam encontrar uma digital? Além disso, posso supor que ele pode se tornar instável quando algo sai fora do controle.
Um homem se aproximou de forma imponente, ele tem pouco mais de trinta anos, cabelo negros, olhos castanhos gélidos e intenso, uma barba bem feita, um porte físico que indicava força e autoridade. A fúria em seu olhar era quase palpável, nada amigável, uma junção perigosa a meu ver
- Aqui é uma cena de crime, não um palco para amadores ou curiosas tentando sair na primeira página do jornal - rosnou. Sua voz rouca e intimidadora me causou um leve arrepio - Saia, ou eu mesmo a retirarei.
Respirei fundo. Tirei os óculos e sorri. Mais um babaca tentando me intimidar.
- Não vai fazer isso. Sabe por quê? - mordi o lábio, deliberadamente - Porque sou a agente especial Sophie, da Europol. Fui transferida para formar uma força-tarefa conjunta. - Levei os óculos à boca e observei como seus olhos seguiram o movimento - Agora... posso trabalhar, ou quer competir pra ver quem tem o maior pênis? Já aviso que irá perder. - Ele pareceu engolir em seco. Irritado.
- Sou o agente Harrisom e esta é a minha equipe! - Notei a possessividade em sua voz, mas não me deixei intimidar. Ele não se apresenta pelo primeiro nome, apenas pelo sobrenome, e isso já diz muito sobre alguém.
- Teremos tempo para apresentações mais tarde. Vamos à cena do crime? - estendi a mão, mas ele simplesmente ignorou. - Vou interpretar sua falta de profissionalismo como um "sim". Ver a cena pessoalmente, e não apenas pelas fotos, pode me ajudar a entender melhor. Quem é a analista comportamental? - perguntei calmamente, me aproximando da moça.
- Sou eu, agente Bethy! - ela estendeu a mão e me cumprimentou. - Mas ainda não temos um perfil concreto. Esse homem é minucioso, temos apenas uma ideia muito superficial. - notei pela voz que estava cansada, mas ainda conseguia sorrir com um charme despreocupado. Meu oposto.
- Acredito que o primeiro ponto a ser analisado é: quem são as vítimas? Entender o motivo pelo qual ele as escolheu pode nos levar ao perfil. - O agente posicionou-se atrás de mim. Talvez tentasse me intimidar. Senti sua respiração nos meus cabelos.
- Já tentamos isso, mas não conseguimos muita coisa!
Umedeço os lábios e passo a analisar, com atenção, cada detalhe ignorado na primeira abordagem. Então, os indago:
- O que, de fato, sabemos sobre as vítimas?
Observo o corpo milimetricamente. Ela estava deitada no sofá, como se posasse para um artista. Maquiada. Cheirosa. Cabelos perfeitamente escovados. As roupas - vulgares - seguiam o padrão das outras vítimas. Talvez ele os escolhesse por parecerem prostitutas ou garotos de programa.
- Todas moravam em Florença. Tinham vidas exemplares, filhos, maridos ou esposas. Participavam ativamente da sociedade. O mais estranho é a vestimenta: não condiz com quem realmente eram. - A agente Bethy me encara, confusa com algumas particularidades da cena. - Eles não faziam programa. Eram casados, com famílias aparentemente perfeitas. Não frequentavam a mesma igreja, nem os mesmos lugares. Nenhuma família conhece a outra. É como se a escolha fosse aleatória.
- Talvez estejam olhando para o lado errado do crime. - explanei. Notei que Harrisom não gostou.
- Que lado errado? - perguntou, sem esconder o tom ríspido.
- O lado sentimental. - Não deixei que ele retrucasse e continuei: - Estão esquecendo que este psicopata enxerga o mundo de forma distorcida. Algo o motiva - ainda não sabemos o quê - mas ele não vê suas vítimas com pena. Existe uma raiva profunda pelo objeto que ele ataca. Há um padrão, e é nosso trabalho descobrir qual.
- Você é sempre assim... gélida? - ele perguntou. Sorri com sua provocação.
- Não é frieza. É objetividade. Este caso exige precisão, não sentimentalismo. - Peguei a câmera e tirei algumas fotos da cena. Ignorei todos ao meu redor. Precisava focar nos detalhes que me revelariam mais do que se via a olho nu.
A construção do ambiente revelava: ele a torturou psicologicamente por horas. O legista se ajoelhava ao lado do corpo. Após algumas análises e medir a temperatura do fígado, concluiu-se que a morte ocorreu há dois dias. Dois dias... e ninguém viu ou ouviu nada.
Ele as obriga a cozinhar, limpar... mas apenas elas comem. Isso mostra seu conhecimento dos nossos procedimentos - e o quanto é esperto.
Notei que ninguém havia se preocupado em verificar o aparelho de DVD. Me aproximei, liguei o aparelho e inseri o disco. Ainda não havia assistido os outros vídeos, mas conhecia algumas fotos - elas estavam apavoradas.
- Viram o filme? - perguntei.
Todos negaram com um balançar de cabeça. Péssimo sinal. Começamos mal. Apertei o play, assisti alguns segundos e desliguei. Coloquei o disco em uma sacola de evidências.
Então, algo chamou minha atenção. Em uma pilha de possíveis provas, dentro de uma sacola de evidências, havia um envelope vermelho.
Lembrei-me de cada cena de crime, e nenhum envelope havia sido relatado nos relatórios ou incluído entre as provas. O mais estranho era o que estava escrito, à mão, na frente do envelope: "Sophie Beauchamp"
Meus dedos hesitaram por um segundo. Coloquei as luvas e abri o envelope com cuidado, mantendo o controle sobre minha respiração. Dentro, havia uma única folha dobrada, escrita com uma caligrafia impecável:
"Você chegou, bonequinha, Finalmente! Cada escolha leva a uma porta. Você abriu a errada. A beleza da arte está em quem a interpreta, e você está interpretando tudo errado. Mas tudo bem... estou aqui para guiá-la. Esse corpo é só o começo."
Engoli em seco, lutando para manter a postura. Iria compartilhar essa pista com a equipe no momento certo, mas havia algo inquietante naquela mensagem, algo pessoal. Imprudente da parte dele me provocar assim... ou seria intencional? Mais perturbador ainda era a ideia de que ele sabia exatamente quem eu era. Eu podia contar nos dedos quem tinha conhecimento da minha vinda, então uma pergunta me trouxe novamente a realidade.
- Por que mandaram você pra cá? - perguntou um dos homens, enquanto analisava o celular e o computador da vítima.
- O senhor é...? - perguntei, encarando-o pela primeira vez.
- Analista Collins. Trabalho com análise técnica. - respondeu com orgulho.
- Me enviaram porque nossos superiores querem respostas. O governo quer silenciar o alvoroço da mídia. Vim para resolver este caso e prender o responsável o mais rápido possível. - Fiz uma pausa e me levantei. Vesti as luvas e me aproximei do corpo. Afastei delicadamente as mechas de cabelo do pescoço e fotografei as marcas de asfixia. - E porque um ano e meio é tempo demais para um caso aberto. Pior ainda: com corpos surgindo regularmente. Antes era um a cada dois meses... agora é um por semana.
Olhei para todos à minha volta.
- Isso mostra como ele pegou gosto pela coisa. Como está ousado. Destemido.
- Já processamos a cena, chefe. Vamos ao departamento analisar as evidências. - disse Harrisom com um tom autoritário. Tentava reafirmar sua posição. Provavelmente sentia-se rebaixado. Isso o incomodava.
- Tudo bem. Irei para casa trocar de roupa e os encontrarei na sala de reuniões. Quero estar a par de tudo. - concluo. - Aprendi algo neste trabalho: nem todos são inocentes. Nem todos são culpados. Precisamos aprender a interpretar as entrelinhas, porque às vezes as pessoas mentem tanto... que começam a acreditar nas próprias mentiras. E fazem os outros acreditarem também.
Tirei as luvas, descartei-as e guardei as evidências recolhidas na maleta, entregando-a a Harrisom, que me lançou um olhar de raiva. Ignorei.
Um dos peritos organizava as plaquinhas amarelas, posicionando-as sobre as possíveis evidências antes de fotografá-las - apenas por garantia. Em breve, teríamos todo esse material em mãos.
Faltava apenas uma coisa.
Peguei os óculos laranja do kit e coloquei-os, junto com a lanterna de luz ultravioleta. Vasculhei o ambiente em busca de vestígios de sangue.
Foi quando vi.
Manchas.
Vestígios que ele nunca deixará antes.
Fiquei surpresa.
Ele cometeu um erro?
Agora o jogo estava começando a ficar interessante.