Perseguindo o Assassino das Bonecas
img img Perseguindo o Assassino das Bonecas img Capítulo 4 Rastro Sombrio
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Capítulo 6 A Verdade Tem Inimigos img
Capítulo 7 Silêncio na Escuridão img
Capítulo 8 Olhos de Vidro img
Capítulo 9 A Marca na Pele img
Capítulo 10 A Maquiagem das Mortas img
Capítulo 11 A Sombra da Morte img
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Capítulo 4 Rastro Sombrio

"... Nada revive o passado tão plenamente quanto o cheiro que já esteve associado a ele...!" Vladimir Nabokov

A conversa com meu pai ainda ecoava na minha mente. Embora questionasse certas atitudes dele, estava quase aceitando a ideia de dispensar Gabriel da equipe. Ele conseguia, com poucas palavras, fervilhar meu sangue, e mal o conhecia.

O legista ligou cerca de uma hora depois com os resultados das digitais. Para um assassino tão meticuloso, ele deveria ter dificultado ainda mais a investigação. A vítima se chamava Chloe Andword. Assim como as anteriores, era casada e tinha duas filhas. O marido, assim como os demais, vivia viajando a trabalho. Ainda assim, eram fiéis. As ligações, os e-mails... tudo confirmava que o crime não envolvia traição.

A parte mais difícil sempre era avisar os familiares. Informar alguém de que a pessoa que ele ama jamais voltará, não importa quantas vezes eu faça isso, nunca deixa de ser cruel. No caso de Chloe, liguei eu mesma para o marido. Falei com ele por mais de meia hora. Ele parecia surpreso, mas não alarmado, era comum que a esposa sumisse por alguns dias, por isso nem avisou ninguém, muito menos registrou boletim de ocorrência. Ainda assim, essa ausência já durava mais do que o habitual.

Consegui acalmá-lo. Ele se comprometeu a vir reconhecer o corpo., mas pediu alguns dias antes que fossemos indagá-lo, ele Tinha duas filhas. Precisava encontrar uma forma de contar que a mãe não voltaria para casa. Sabemos o quanto isso pode destruir alguém.

Solicitei o levantamento completo do histórico de chamadas e mensagens. Precisávamos saber com quem ela falou nas últimas horas. Amanhã cedo, irei até o IML. Preciso conversar com o legista pessoalmente. Embora existam muitas similaridades entre as vítimas, o tempo que ele mantém cada uma em cativeiro varia - e isso pode nos dar pistas de onde estavam ou como foram capturadas.

Tenho feito anotações obsessivas. A cada reunião, novas possibilidades surgem - e devo confessar: a hacker novata, Karen, é realmente talentosa. Talvez ela consiga nos levar até ele.

Mas... Gabriel.

Aquele homem me tira do sério. Cada palavra que sai da boca dele parece uma provocação, uma farpa envenenada. As frases com duplo sentido... me desestabilizam. Eu não deveria me afetar, mas a tensão entre nós cresce a cada passo da investigação.

Avançamos o máximo que podíamos até dar por encerrada a noite. Estava tarde. Todos precisavam descansar. Eles tinham uma vida lá fora. Eu? Não. Minha vida é esse trabalho. Sem relacionamentos amorosos duradouros. Sem intimidade que valha a pena lembrar. O trabalho é meu refúgio. E meu castigo.

Durante a reunião, ele saiu duas vezes para atender ao telefone. Estava visivelmente irritado. Notei os olhares trocados entre os colegas. Depois me contaram que ele era pai. Aquilo me desarmou um pouco. Talvez estivesse lidando com a saudade, com a ausências.

Ainda assim, trocamos farpas até o fim. Era como se nenhum dos dois soubesse ceder. Só quando notamos que já passava da meia-noite é que resolvemos encerrar.

- Agente Sophie - ele me chamou, enquanto todos se levantavam. - Podemos finalizar hoje?

Assenti em silêncio. Mas minha mente continuava em alerta. A noite pode ter terminado... mas o jogo só estava começando.

- Sim. Amanhã, às nove horas, nos reunimos aqui e começamos a remontar o caso do zero. Vamos tentar uma nova perspectiva. - Fixei meus olhos em Gabriel, esperando pela próxima farpa. - Assim que montarmos um perfil concreto, quero começar, na semana que vem, a visitar os familiares das vítimas.

- Irá falar com eles sozinha ou prefere que alguém a acompanhe? - ele perguntou, e fiquei pensativa por um momento.

- Na verdade, Gabriel, quero que me acompanhe. Você conhece essas pessoas há mais tempo do que eu, e acredito que sabe como agir diante delas. Enquanto conversam, posso pedir para ir ao toalete e dar uma olhada na casa. Se acharmos prudente, solicitamos um mandado. - Peguei o relatório das outras vítimas e o encarei novamente. - Não procuraram nada nas casas das vítimas anteriores?

- Não. - ele negou.

- Tudo bem. Vamos fazer algumas visitas amanhã. Então sugiro que não se atrase.

- Jamais faria isso, chefe. - Notei o olhar malicioso, seguido por um sorriso sarcástico.

- Gabriel, vamos beber hoje ou seu filho já está de férias? - perguntou Beth.

- Só daqui a um mês, mas está em semana de provas... E com aquela ideia de que estou pegajoso demais e preciso dar liberdade a ele. Onde já se viu um menino de dez anos dizer isso ao pai? Espero que não apareça mais nenhum corpo até lá, ou terei que mandar o Ethan para a casa dos avós novamente. - Olhei para os lados, tentando não pensar demais nisso.

- Agente Sophie - Beth me tirou do devaneio -, vai beber conosco hoje, né?

Antes que eu pudesse responder, Gabriel interveio:

- Claro que ela vai. Quem você acha que vai pagar a primeira rodada?

Fiquei confusa, ainda mais por ele não ter comentado sobre meu pai. Mas eu também guardava meus próprios segredos - como o envelope endereçado a mim.

- Um drink apenas. O dia foi longo, assim como o voo, e preciso descansar. Temos um longo trabalho pela frente.

Ele tentou soar educado ao final da reunião, mas eu sabia: aquilo era apenas um teste. Me convidarem para beber e ele insinuar que eu pagaria a primeira rodada era uma provocação calculada. E eu sabia que não podia recusar - seria suicídio profissional, ainda mais se quisesse conquistar a simpatia da equipe.

Mas foi no momento em que ele me entregou a maldita chave da sala que nossos dedos se tocaram brevemente. E isso... isso despertou sensações adormecidas em mim. O cheiro amadeirado, com notas cítricas, me deixou aérea. Aquele olhar sedutor era o suficiente para povoar as fantasias de muitas mulheres.

Engoli em seco, vendo-o sair da sala apressado, após dizer:

- Heitor dará uma carona a você e à Beth. Enquanto isso, levo os demais ao bar. Sugiro que alugue um carro, ao menos até resolvermos o caso. - Sua voz era calma. - Se precisar de algo, deixe seu número de celular e e-mail com a Karen. Ela vai te colocar no grupo para receber informações, notícias... e, claro, trocar mensagens. Recomendo que silencie o grupo à noite - ele costuma ser agitado.

Um drink. O que havia de errado em um pouco de álcool no sangue? Talvez esse drink me levasse à cama de alguém - e eu não queria isso. Ao menos não agora.

Heitor nos levou ao pub, um lugar animado no centro da cidade. Tinha um toque dos anos 80 com uma pegada moderna. Procurei rostos conhecidos e, ao encontrar a equipe, nos juntamos a eles em uma mesa redonda. Parecia que todos queriam que eu e Gabriel nos entendêssemos. Fizeram de tudo para que sentássemos lado a lado. A mesa, circular, encaixava em uma poltrona oval que comportava todos.

Esperamos a bartender aparecer com os menus. Quando ela chegou, mordeu o lábio ao encarar o homem ao meu lado.

- Boa noite, pessoal. O que vão comer e beber hoje? - A voz era sensual. - O de sempre pra você, Gabriel? - Ela sorriu para ele. - Saio à meia-noite, se quiser me dar uma carona...

Ela pegou a caneta e mordeu a ponta. Os olhares dos rapazes se iluminaram.

- Seria um prazer levá-la para casa, Cindy. - Gabriel era um daqueles homens sedutores que não perdem uma oportunidade.

Enquanto trocavam olhares e frases com duplo sentido, decidi intervir. Do contrário, não sairíamos dali hoje - e amanhã o dia seria longo.

- Podemos pedir, Cindy? - interrompi. A tensão entre os dois era palpável. Não precisavam se pegar ali, na nossa frente.

- Claro, docinho. - Ela me olhou com muito interesse. Juro que mordeu o lábio enquanto me observava. Começou a dar em cima de mim. Não que eu não gostasse da atenção, mas... em outra ocasião, talvez.

- Bellini e uma porção de fritas - pedi. Percebi que ela olhava para meu decote. Alguns botões da camisa estavam abertos. Desviei o olhar.

Os outros fizeram seus pedidos. Quando Gabriel pediu o mesmo drink que eu, o encarei, confusa. Ele não parecia o tipo de homem que bebia coquetéis.

- Boa escolha, aliás... - Ela olhou para meu crachá provisório, que eu havia esquecido de tirar. - Sophie... - disse meu nome de forma deliciosamente provocante. - Se quiser participar mais tarde, é só me ligar. - Entregou um papel com o número dela. Fiquei boquiaberta. Nem todos costumam ser tão diretos.

Ela saiu, me olhando intensamente. Se estivesse de férias, talvez me envolvesse com ela - ou com alguém. Mas a serviço... difícil relaxar. Difícil confiar.

- Vai participar mais tarde? - Gabriel perguntou com a voz rouca.

- Nem nos seus sonhos - respondi, encarando todos à mesa.

- Então, Sophie, por que Florença? - perguntou Ryan, curioso.

- De um jeito ou de outro, vocês saberiam. Melhor que seja por mim. - Não queria olhar para Gabriel, mas sentia seus olhos em mim. - Meu pai me colocou nessa. Não se diz "não" ao senhor John. E quando ele promete que, se eu resolver esse caso, ganho a promoção que quiser... você simplesmente aceita, pega o primeiro avião. Mesmo que a princípio fosse apenas como consultora. Meu pai tem um jeito peculiar de tomar decisões por mim. Quando se é o diretor da Europol, com amigos em todos os cantos do mundo, você não recusa. Não se quiser manter a carreira viva.

- Seu pai é o Big John? - A maioria ficou surpresa.

- Sim. Então já sabem: ninguém diz "não" a ele. - Todos concordaram.

- Tenho que admitir... está fazendo um bom trabalho - disse Gabriel. O encarei.

- Vindo de você... quase um elogio. - Todos riram. As bebidas chegaram. Para minha surpresa, vieram três tequilas junto.

- Os cavalheiros no bar enviaram para vocês. Cortesia. Esperam que, além de aceitarem, deem seus números ou ao menos conversem com eles.

- Uau, adoro bebida grátis - disse Beth, erguendo o copo e virando de uma vez.

- Não fazem mais homens como antigamente... - disse outra agente. - Mas aceito.

- Obrigada, mas meu número ainda não está disponível. - Respondi. Notei o sorriso divertido de Gabriel.

- As porções chegam em breve - disse Cindy, piscando para mim antes de sair.

- Alguém está arrasando corações - disse Ryan, e senti minhas bochechas queimarem.

- Um brinde? - propôs Gabriel.

- Claro. - Erguemos os copos.

- A essa nova parceria. Que encontremos esse maldito com novos olhos - e que ele apodreça na cadeia. - Concordei com Ryan e bebi um gole. O sabor de pêssego era delicioso.

- Uma dúvida: por que permitiram que ele tivesse tanto poder?

- Que poder? - Ryan perguntou.

- A imprensa o chama de "Assassino das Bonecas". Isso deu a ele notoriedade... e ousadia. - Beberiquei meu coquetel.

- Não foi nossa escolha. Tentamos conter a imprensa, mas era tarde demais. - Gabriel explicou. Concordei em silêncio.

- Vamos dançar, chefe? - insistiu Beth.

- Hoje não. Estou exausta. - Os quatro se levantaram e foram para a pista, me deixando sozinha com Gabriel.

- Acho que começamos com o pé esquerdo. Mas teremos tempo para nos acertar... pelo bem das vítimas. - Pela primeira vez, senti sinceridade em sua voz.

- Veremos, agente Harrisom - respondi.

Ele pediu licença e foi até o bar. Acredito que tentava conquistar Cindy - o que significava que eu não precisava me preocupar com ele.

Beth voltou e me puxou para a pista. Mesmo contrariada, dancei com elas. Mas foram os olhares dele sobre mim que me fizeram continuar. Talvez... a provocação fosse o nosso idioma comum.

***

Quando retornamos à mesa, as porções foram servidas e aproveitamos para nos conhecermos um pouco mais. Eles eram muito legais e, apesar das circunstâncias, me aceitaram na equipe. Depois de comer, voltaram para a pista de dança enquanto eu terminava meu coquetel. Gabriel resolveu trocar de lugar e sentar-se à minha frente. Ele é como eu: prefere conversar olhando nos olhos. Quando terminei a bebida, pedi uma soda de maracujá sem álcool, para quebrar o efeito da anterior.

- Há quanto tempo é agente? - perguntou, curioso.

- Desde que me conheço por gente. Sempre soube que queria seguir os passos do meu pai. Mas, depois que me especializei em certos tipos de crimes, mudei o rumo da minha trajetória na Europol - respondi, com calma. - E você?

- Meu pai era policial, um dos bons. Morreu quando eu era criança, cumprindo o dever. Desde aquele dia, quis pegar os homens maus - ele fez uma pausa breve. - Então percebi que queria mais do que uma farda. Queria ir atrás dos verdadeiros criminosos. Depois que me formei com honras, tornei-me agente. Conheci minha falecida esposa no tribunal. Ela tinha um senso de justiça incrível... Amei-a no primeiro olhar. Perdê-la foi a pior coisa que me aconteceu. Desde então, vivo para o meu distintivo. Quero deixar um mundo melhor para o meu filho - ele dizia com orgulho.

- Que idade ele tem? - perguntei. Ele pegou o celular e me mostrou uma foto.

- Dez. O nome é Ethan. Ele é um bom garoto: esperto, gentil, inteligentíssimo. Puxou todas as qualidades da mãe - havia um brilho genuíno em seu olhar.

- Se ele puxar o gênio do pai, teremos problemas - começamos a rir. Foi então que percebi que a conversa se tornara pessoal demais. Resolvi que era hora de ir embora.

- Está tarde, vou para casa - avisei.

Ele prontamente respondeu:

- Quer que eu te dê uma carona? - perguntou de repente. - Não vai ser nada demais. Sempre levo alguém pra casa, já que sou o que menos bebe. Heitor também. Da última vez que saímos, ele bebeu mais de dois chops e acabou no calendário dos bombeiros. Detalhe: no calendário masculino, se é que me entende.

Comecei a rir. Jamais imaginei que Heitor pudesse fazer esse tipo de coisa. Parecia tão reservado e tímido.

- Agradeço, mas parece que você já tem companhia para esta noite e não quero atrapalhar. Vou pegar um táxi - abri a bolsa, tirei a carteira e deixei uma nota de 50€ embaixo do prato. - Nos vemos amanhã.

Levantei-me e acenei para a equipe. Antes de sair, percebi que ele ainda me encarava. Depois sorriu, levantou-se e foi até a bartender, sussurrando algo em seu ouvido. Dei as costas e saí andando. Pedi um táxi, que chegou rapidamente. A viagem era um pouco longa, então aproveitei para relaxar. Não era sempre que me permitia isso - ainda mais me divertir com quem mal conheço.

Cheguei em casa e finalmente pude explorar o ambiente. Era bem completo e aconchegante. Meu pai tem bom gosto e jamais me deixaria dormir em um hotel qualquer. Subi para o quarto, desfiz as malas, guardei tudo no lugar e tomei um longo banho. Vesti uma camisola e, assim que me deitei na cama, recebi uma mensagem.

Estava tarde demais para ser meu pai. Eu mal havia passado esse novo número para os colegas.

A curiosidade falou mais alto. Peguei o celular e li a mensagem em voz alta:

"Boa noite, agente Sophie Ashley Walker. Fiquei lisonjeado ao saber que veio para cá apenas para me conhecer. Estou ansioso para que os jogos comecem, mas darei uma vantagem de um mês para que se inteire de tudo.

Até lá, sugiro que me cace com todos os seus recursos e astúcia, porque não vou facilitar para você.

A propósito, eu adoro pêssego... e fiquei tentado a provar dos seus lábios, para saber se têm o mesmo gosto da bebida."

Fiquei em choque por alguns segundos. Pensei em ligar para a sede e pedir os números dos meus colegas, mas mudei de ideia. Aquela mensagem mudava tudo.

Quase ninguém sabia que eu havia vindo para integrar a investigação, o que significava que o criminoso tinha contatos. E, pela mensagem, ele estava nos observando.

Eu precisava contar à equipe... mas não hoje. Se tem algo que aprendi sobre esse psicopata é que ele sempre cumpre o que promete. Isso me dava quatro semanas para encontrá-lo - ou me aproximar ainda mais dele.

Ele era meticuloso. O celular era irrastreável, fazia parte do jogo. Então eu jogaria. E o faria cometer um erro.

Apaguei a luz e deixei o celular sobre o criado-mudo. Abri a gaveta, peguei minha arma e a coloquei debaixo do travesseiro.

Cautela nunca é demais.

            
            

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