Acordei cedo, decidida a retomar minha rotina. Nada como uma corrida matinal para acalmar o turbilhão que me consumia desde a noite anterior. Vesti uma roupa de ginástica preta com detalhes azulados, tênis branco e prendi o cabelo em um rabo de cavalo. Assim que voltasse, tomaria um banho longo, encontraria o melhor café da manhã da cidade e começaria, enfim, meu "primeiro" dia na agência.
Mas desde o instante em que abri os olhos, algo me corroía por dentro. A curiosidade latejava, viva, pulsante. Ele estava me observando. E eu sequer sabia por quê.
Sabia, é claro, da audácia de certos criminosos - muitos se deleitam em testar os limites dos investigadores, provocando, manipulando, brincando com a mente como quem move peças em um tabuleiro invisível. Mas esse era diferente. Frio, meticuloso, arrogante. Não parecia o mesmo da cena do crime de ontem... ou talvez, justamente por isso, fosse ainda mais perigoso.
O perfil preliminar que tracei naquela madrugada mostrava semelhanças entre algumas cenas, mas havia exceções. Elementos que destoavam. E isso me inquietava.
Após a corrida, tomei um banho demorado e escolhi a roupa do dia: calça preta, blusa de cetim azul-marinho, jaqueta preta com bolsos estratégicos e botas de cano longo. Visitaríamos alguns familiares das vítimas. Nunca é fácil, mas é necessário. Talvez, entendendo quem elas foram, eu compreendesse por que foram escolhidas.
Peguei a bolsa e, ao sair, deparei com o agente Gabriel encostado numa SVU preta, segurando dois copos de café. Tranquei a porta, acionei o alarme e considerei seguir a pé... mas havia algo no modo como ele me olhava. Um sorriso gentil nos lábios. Aquele charme natural de macho alfa. Estendeu o café, esperando que eu aceitasse.
- Bom dia, Sophie.
- Bom dia! - respondi, tentando disfarçar o embaraço. - Fico feliz em saber que já ultrapassamos as formalidades.
Mordi o lábio no mesmo instante. Arrependi-me. Tentei mudar de assunto.
- O que faz aqui tão cedo? - perguntei, dando um gole no café. Estava delicioso.
- Vim trazer isso - disse, entregando-me a chave do carro.
- Como sabe onde moro?
- Na sede. Sou sempre o primeiro a chegar. Resolvi pedir desculpas apropriadamente. Então, peguei a chave e vim buscá-la.
- Espero que me dê uma carona, porque odiaria chegar atrasado no primeiro dia. Preciso confessar: minha chefe é uma megera desalmada e adoraria me ver demitido.
Ele abriu um sorriso travesso. Rimos juntos. "Megera" era novo para mim - já me chamaram de coisa bem pior.
- Te dou carona hoje, mas não se acostume. Sou mesmo uma megera desalmada.
- Não esperaria nada menos - respondeu ele, abrindo a porta para mim. Gabriel não era do tipo cavalheiro. Aquilo me intrigou.
- Aproveitei e completei o tanque. Peguei também o relatório com os endereços dos familiares das vítimas. A maioria vive em províncias diferentes, mas os primeiros são aqui em Florença. Há um padrão: todos os corpos foram encontrados em prédios desocupados há mais de cinco meses. É o único elo físico entre eles.
- Um detalhe relevante - murmurei, ligando o carro. Notei que ele colocou o cinto com pressa.
- Eu dirijo bem, mesmo ainda me adaptando ao trânsito daqui. - Evitamos colocar essa informação nos relatórios. Não queremos imitadores.
Concordei. A imprensa pode ser tão perigosa quanto o próprio assassino.
- Acredito que aparecer sem aviso seja o mais prudente. Muitos familiares em luto evitam esse tipo de conversa. Quero começar com o marido da última vítima e depois seguir para a esposa da primeira. Espero visitar os vinte e nove familiares até o fim do mês.
Ele assentiu. Olhei o retrovisor, os espelhos - precaução. Sempre.
- Vamos viajar bastante... pretende ir e voltar todos os dias ou prefere alugar quartos nas cidades próximas? - ele perguntou.
- Você tem razão. Vou pedir à secretaria que reserve dois quartos por cidade e também providenciar equipamentos para videoconferência. Além disso, quero outro agente conosco. Você tem um filho, Gabriel, não posso pedir que se afaste dele por semanas.
Ele pareceu incomodado.
- Está tentando se livrar de mim? - disse num tom baixo, quase sensual.
- Eu não disse isso...
- Eu sei. Está com medo de dormir perto do meu quarto e não resistir.
Abri a boca para responder, mas nenhuma palavra saiu. Apenas bufei.
- Brincadeiras à parte - prosseguiu -, faço isso pelo meu filho. Já estou pensando em deixá-lo com minha mãe. E, sinceramente, conheço essas famílias. Alguns só confiam em mim. Não será fácil se for sozinha.
Ele tinha razão. Dei-me por vencida.
- Tudo bem. Se estiver tudo certo por você, seguimos assim. Temos quinze dias para revisar todo o material da investigação. Recomeçar do zero é essencial para pegá-lo.
- Está com medo de ficar sozinha comigo? - ele perguntou, me encarando. Engoli em seco. Fingi indiferença. - Não. Mas acho que você não pode dizer o mesmo.
- Então vamos ao que importa. Acha mesmo que começar do zero é a melhor estratégia?
- Sim. Se ele ainda está solto, algo está errado. Aliás... - estendi a mão para a bolsa - Pegue meu celular e leia a última mensagem recebida.
Ele hesitou, mas obedeceu. Seu semblante mudou ao terminar.
- Como ele tem seu número...? Nenhum outro agente foi ameaçado de forma tão direta. Tem certeza de que deve continuar nesse caso?
A preocupação dele era genuína. Mas eu já havia decidido.
- Não. Se eu sair, ele vence. O que me intriga é: como ele tem meu número se nem eu sabia dele? Meu telefone pessoal é criptografado e pensei que o da sede também fosse. Ainda assim, ele sabia quem eu era. - minha voz oscilou entre o medo e a curiosidade. - Isso me leva à pergunta inevitável: talvez exista um traidor na sua unidade.
Ele puxou o freio de mão e freou bruscamente o carro.
- SEU IDIOTA, QUER NOS MATAR? - gritei, enfurecida.
- Nunca mais ouse falar mal da minha equipe!
Liguei o sinal de alerta para os motoristas atrás de mim.
- Nunca mais faça algo imprudente que ponha outros em risco! Está ouvindo? Se não consegue lidar com uma simples opinião contrária, sugiro que saia da investigação. - o encarei com firmeza.
- Está falando da minha família.
Apontei o dedo para ele. Estava furiosa. Quase causamos um acidente feio.
- Ele não descobriria o número de um telefone que mal tirei do pacote ontem. Então deixe o emocional em casa e use só o racional. Caso contrário, não vamos funcionar. Estou aqui para fazer meu trabalho, não para cultivar amizades - tampouco uma família. Eu sei o que é descobrir um traidor entre os que mais se ama. Então aqui vai uma lição gratuita: confie desconfiando. Até da sombra. Porque ela é a primeira a te abandonar na escuridão.
Já vi pessoas com ódio no olhar... mas, pela primeira vez, senti medo real ao encarar aqueles olhos azuis, agora escurecidos pela raiva.
Ele tenta abrir a porta, mas tranco o carro. Seguro firme a chave. Ele hesita, tenta se controlar. Respira fundo, conta até dez. Uma técnica clara para não explodir.
- Vamos logo. Estamos perdendo tempo. - respiro fundo para não rebater. Apenas ligo o carro e sigo em silêncio, ouvindo apenas suas instruções de direção.
Não trocamos mais uma palavra.
Ele estava irritado. E, embora eu tenha pisado em seu calcanhar de Aquiles, não abaixaria a cabeça. Era uma suspeita óbvia: ele não poderia ter meu número sem ajuda externa.
E agora... minha sombra também me parecia suspeita.
***
Ele saiu do carro todo irritadinho, batendo a porta com força - como se estivesse fugindo de uma briga. Apenas o ignorei, desliguei o carro, peguei minha bolsa e, só então, percebi que ele havia levado o meu celular.
Assim que entrei no prédio, recebi alguns olhares curiosos e outros visivelmente descontentes. Respirei fundo, controlei o impulso de revidar e segui até a sala de reuniões, onde todos já me aguardavam.
Foi aí que vi: Gabriel e Karen estavam analisando meu celular. Sem meu consentimento.
Mas bastou um olhar dele para entender o que estava fazendo. Ele queria provar algo. Talvez tentasse consertar a imagem que acha que construí da equipe. O problema é que eu nunca disse que desconfiava de alguém especificamente... mas também não vou permitir que ele deturpe minha fala para tentar me desmoralizar.
- Bom dia a todos. Vou ser breve - anunciei, permanecendo de pé. - Ontem, na cena do crime, havia um envelope vermelho. Dentro dele, uma espécie de charada. O curioso é que o envelope estava endereçado a mim. Posso contar nos dedos quem sabia da minha vinda. Não faço ideia de como ele teve acesso a essa informação... mas teve. E não apenas isso: ele sabia exatamente quando eu chegaria, e detalhes pessoais sobre mim. O que estava escrito era claramente direcionado a mim. - Fiz uma breve pausa, tentando conter o nó que se formava na garganta. - Mas o mais estranho não foi a carta. Foi a mensagem anônima que recebi no celular fornecido exclusivamente para esta investigação.
Respirei fundo, sentindo o peso de cada palavra antes de continuar.
- É um número pré-pago, sem GPS. Sem rastreamento. O remetente não é tolo. Nem descuidado. E, sendo bem direta: pouquíssimas pessoas teriam acesso a esse número. Pouquíssimas. Aliás... nem eu mesma o conhecia até ontem.
Agora, enfim, me permiti sentar. Esfreguei as têmporas com força, como se pudesse, de algum modo, pressionar as respostas a saírem do fundo da minha mente.
- Preciso de respostas. Coerentes. Precisas. O que podem me dizer?
O silêncio que se seguiu foi denso. Nenhum dos agentes ousou desviar o olhar. Não era respeito. Era medo. Medo do que aquilo significava. Medo de que, entre nós, houvesse um deles.
Gabriel foi o primeiro a se pronunciar.
- Isso é sério demais. - Sua voz estava rouca, contida. Ele se inclinou para frente, apoiando os antebraços sobre a mesa. - Sophie... você está dizendo que alguém aqui dentro pode ter vazado essas informações?
- Então, temos duas possibilidades: ou há um traidor dentro deste edifício... ou o assassino conseguiu decodificar um telefone com alto nível de criptografia. Em ambos os casos, isso revela uma falha grave de segurança. E deixa claro que ele é meticuloso - e está tentando me envolver num jogo psicológico.
Olhei para ele por um instante. Seus olhos pareciam sinceros, mas eu já aprendera a não confiar apenas no que é visível. A mentira, às vezes, tem um rosto muito calmo.
- Estou dizendo que alguém sabia. E que esse alguém compartilhou o que não devia - respondi, com frieza. - Seja por intenção, seja por descuido, o estrago foi feito. Ele está à nossa frente. Brincando com a nossa estrutura. Com a minha mente.
Uma das agentes ao fundo, uma novata chamada Elisa, pigarreou, visivelmente desconfortável.
- E... a carta. O que dizia, exatamente?
Hesitei por um segundo. Relembrar as palavras era como trazer o cheiro da cena de volta: doce, enjoativo, perturbador.
- "Você chegou, boneca. Finalmente! Cada escolha leva a uma porta. Você abriu a errada. A beleza da arte está em quem a interpreta, e você está interpretando tudo errado. Mas tudo bem... estou aqui para guiá-la. Esse corpo é só o começo." - Minha voz saiu baixa, quase sussurrada. - Só isso. Mas o suficiente. Ele sabe quem eu sou. E, mais importante: sabe que eu estou caçando ele.
Gabriel levantou-se, visivelmente irritado.
- Isso pode ser um blefe. Alguém tentando te desestabilizar. Sabemos como esses psicopatas operam. Criam armadilhas mentais. Te empurram para o limite. Se começarmos a desconfiar uns dos outros, ele vence.
- Ele já está vencendo, Gabriel - respondi, num tom mais sombrio. - Cada passo que ele dá, cada provocação, nos afasta do controle. E se não encontrarmos a origem desse vazamento, seremos os próximos alvos.
Levantei-me novamente, sentindo o peso da responsabilidade colar-se à minha pele como um casaco molhado.
- A partir de hoje, ninguém sai, ninguém entra, sem meu conhecimento. Toda comunicação será monitorada. Os relatórios serão centralizados em mim. E quero os registros de chamadas, acessos e deslocamentos desde a semana passada. De todos.
Ninguém respondeu. Apenas acenaram, um a um, com a cabeça. O clima era cortante.
A confiança... havia sido assassinada. Pousei os olhos diretamente sobre Gabriel.
- Sei que você já comentou algo a respeito, porque ninguém aqui parece chocado. - Fiz uma pausa. - Se houver perguntas, responderei com prazer. Mas, agente Gabriel, sugiro que as façam na minha presença. E não pelas minhas costas.
Virei o corpo e saí da sala. Eu precisava de outro café.
Acho que ele não esperava por essa exposição direta. Mas, ao ver sua expressão confusa, tive certeza de que ele entendeu o recado: eu não sou mulher de joguinhos. Se for necessário falar, falarei, sem hesitar.
Fui até a sala de descanso, peguei uma xícara e me servi de café quente. Ao voltar, todos me encararam. Ignorei os olhares e me sentei, esperando que os demais ocupassem seus lugares.
- Podemos começar?
- Sim, chefe - respondeu Gabriel. Foi o primeiro a se sentar - não ao meu lado, mas de frente para mim. Queria me encarar. Me testar.
- Eu olhei seu celular. Nenhuma barreira foi quebrada. Não faço ideia de como conseguiram seu número, mas... aqui não temos traidores - disse ele, a voz firme, quase cortando o ar.
Revirei os olhos, sentindo o peso daquelas palavras descer na garganta.
- Não é uma acusação, Gabriel. É uma constatação - respondi, tentando manter o tom neutro, mas o coração disparado denunciava o contrário. - Alguém está jogando contra nós. E não, eu não disse que era algum de vocês. Muita gente circula por aqui. E, acreditem: dinheiro, às vezes, corrompe até os mais íntegros. - Mantive o olhar frio, como um gelo que insiste em congelar a verdade.
A equipe já estava reunida ao redor da mesa quando ele lançou um deboche, venenoso:
- Você realmente acha que alguém deste prédio... - parou, respirou fundo, a voz caindo num sussurro cortante: - ... está jogando contra nós? Contra a investigação? Contra tudo pelo que lutamos?
O silêncio se fez. Era como se o ar pesado tivesse se condensado em forma de sombra ao redor de cada um.
- Alguém relatou. Posso não saber quem, mas enquanto essa sombra pairar sobre nós, ninguém está seguro. Nem você. Nem eu. Isso é uma questão de caráter. - A firmeza da minha voz tentava dissipar a tensão, mas sentia que cada palavra era um punhal cravado na minha própria confiança.
Ele me encarou, tentando me desnortear.
- O seu caráter... ou o de alguém próximo?
Respirei fundo, sentindo o ar faltar. Ele queria me desestabilizar, arrancar a máscara que eu cuidadosamente mantinha.
- Vai ter que descobrir sozinho - soltei um sorriso malicioso, afiando a lâmina invisível do jogo psicológico.
Ele me lançou um olhar de quem foi ferido, mas não cedeu.
- Se alguém tiver algo a esconder, Sophie, você será a primeira a saber. Irei investigar isso a fundo. - O tom parecia leve, quase despreocupado, mas havia uma faísca de ofensa contida ali. A equipe, por sua vez, parecia entender meu ponto de vista, silenciosa e desconfortavelmente.
Sem dar espaço para mais provocações, continuei:
- Vamos ao que realmente importa. Quero que esqueçam tudo o que acham que sabem sobre esse caso. Apaguem as certezas. Esvaziem a mente. Descartem cada detalhe que aceitaram como verdade e comecem a observar o que deixamos passar. Os dados ignorados. As nuances que não colocamos no papel. Começaremos do zero.
O olhar de cada um se fixou em mim, carregado de dúvida e expectativa. Eu sabia que, a partir dali, nada mais seria como antes.
- Ontem avançamos muito. Percebemos que cada elemento pode ter múltiplas interpretações. Quero que mantenham esse olhar. Enquanto isso, Gabriel e eu visitaremos os familiares das vítimas. Teremos videoconferências diárias com a equipe - acredito que o início da noite seja o melhor horário. E, se possível, tentaremos não nos matar no caminho.
Olhei diretamente para Gabriel. Ele me lançou um olhar impaciente, mas não respondeu. Fiquei satisfeita.
Pedi que silenciassem os celulares e trancassem a sala. A partir de agora, ninguém teria acesso às informações ali discutidas sem minha permissão. O clima ficou tenso, mas com o tempo, eles entenderam meu ponto de vista. Ao longo de algumas horas revisando pistas antigas com olhos novos, ficou evidente que o assassino era muito mais do que aparentava.
Ele era brilhante. Maquiavélico. Estava sempre à frente. A crueldade com que escolhia suas vítimas indicava algo além do aleatório - talvez houvesse um padrão que ainda não conseguíamos enxergar.
Mas o que mais me perturbava era outra coisa.
Gabriel agora estava muito mais focado em mim.
E isso... isso poderia ser perigoso.