- Grande canídeo - murmurou Arthur, meu colega de turno, mastigando o mesmo chiclete que usava desde as nove da noite. - Lobo, cachorro, sei lá. Eles sempre dizem isso.
Revirei os olhos.
- Isso aqui não é mordida de animal. É algo diferente... humano demais.
Arthur bufou.
- E lá vem você com suas teorias. O último corpo que disse ser "diferente" era um caso de overdose, lembra?
- Sim. Até o legista ver as marcas no pescoço e perceber que alguém drenou o sangue da mulher. - Sorri de canto, só para provocar. - A diferença é que agora ninguém vai dizer que foi um acidente.
Ele ergueu as mãos em rendição.
- Ok, ok, doutora Morgan. Continue sua análise de monstros. Só me avise quando tiver certeza de que o bicho não está por aqui, certo?
Esperei ele sair. Só então me aproximei novamente da maca.
Peguei a câmera e fotografei cada detalhe. Quando o flash acendeu, por um breve instante, juro que vi algo mover-se no reflexo do inox. Uma sombra atrás de mim.
Virei rápido.
Nada.
O silêncio ficou mais pesado. Até o ar parecia mais espesso.
Respirei fundo, tentando voltar à razão.
- Você está cansada, Allison. Só isso. - Murmurei, apertando o jaleco.
Mas, quando toquei o peito, bem no centro do esterno, um calor estranho se espalhou pela pele.
Era como se meu corpo reagisse a algo invisível - ou alguém.
O batimento acelerou. E, pela primeira vez, senti medo... e curiosidade ao mesmo tempo.
Voltei à mesa, mas o foco já tinha ido embora.
Em vez de estudar o corpo, comecei a pensar nos últimos dias - os rumores de ataques, o aumento de desaparecimentos nas redondezas da cidade antiga.
E aquele som...
Um tipo de batida no fundo da mente. Não era música. Era um ritmo, algo que vinha de dentro e de fora ao mesmo tempo.
Peguei o gravador.
- 23h47. Corpo masculino, cerca de trinta anos, marcas extensas no abdômen e ombro. Cortes formam padrão geométrico simétrico. Possível ataque ritualístico.
Parei.
A palavra "ritualístico" ficou ecoando no ar.
Por que soava tão certa?
Fechei os olhos por um segundo. O cheiro metálico do sangue se misturava ao perfume da chuva que entrava por uma janela mal fechada.
Quando abri os olhos, algo novo estava lá: um símbolo desenhado na pele do cadáver.
Não com corte. Com queimadura.
Um círculo incompleto, linhas curvas no centro, como garras tentando se unir.
Fotografei rápido.
O flash iluminou o vidro da janela, e então eu o vi.
Um homem do lado de fora.
Alto, ombros largos, encostado na parede como se fizesse parte dela. A chuva o cobria, mas ele não parecia se importar. Mesmo com o vidro e a distância, eu podia sentir o olhar dele - firme, pesado, de alguém que já viu demais.
E o mais estranho: eu não fiquei assustada.
A luz piscou. Quando olhei de novo, ele já não estava lá.
O coração martelava no peito. Tentei racionalizar. Talvez fosse alguém da polícia. Talvez fosse só um transeunte.
Mas uma parte de mim sabia que não.
Sabia que aquele olhar tinha atravessado o vidro, a sala e a minha pele.
E deixado uma marca.
O calor no peito voltou, mais forte.
Por reflexo, abri o jaleco e olhei. A pele estava vermelha, pulsando.
Um círculo leve começou a se desenhar - o mesmo símbolo que estava no corpo da maca.
Meu corpo reagia à presença dele.
Dei um passo para trás, encostando na parede fria. O símbolo desapareceu em segundos, mas a sensação não.
Como se algo tivesse despertado e agora respirasse dentro de mim.
A porta se abriu de repente. Arthur voltou, segurando um copo de café.
- Está tudo bem? - perguntou. - Você está pálida.
Engoli seco.
- Só cansada. - Peguei a prancheta e fingi anotar algo. - Já está quase na hora de encerrar o turno.
Ele assentiu, distraído, e saiu de novo.
Sozinha, olhei para a janela mais uma vez.
O vidro mostrava apenas meu reflexo, mas a chuva criava distorções, e, entre uma gota e outra, achei ver dois reflexos por um instante.
O meu - e o dele.
Um trovão cortou o céu. As luzes piscaram. O gerador demorou um segundo a responder, e nesse segundo, a sala inteira mergulhou no escuro.
No breu, ouvi um som baixo - não vindo da porta, mas de dentro da parede, ou talvez... de mim mesma.
Um rugido.
Quando a luz voltou, o corpo na maca estava imóvel, mas as pupilas estavam dilatadas, como se tivessem acabado de ver o próprio inferno.
Toquei o símbolo na pele morta e senti calor.
Um corpo morto não deveria ter calor.
Recuei. Peguei o celular, tirei uma foto, e ao olhar a imagem, o símbolo parecia brilhar em azul na tela.
Não piscava. Brilhava.
Abaixei o aparelho, tremendo. O símbolo, ao vivo, estava apagado.
Na foto, ardia como fogo.
Meu telefone vibrou. Uma mensagem de número desconhecido:
"O que você viu esta noite vai te escolher."
Deixei o celular cair.
A janela bateu com o vento.
E lá fora, por um segundo, aquele homem estava de volta, debaixo da chuva, o olhar fixo em mim.
E então, o mundo pareceu parar.