Quase amanhecendo, eu levantei, encostei a testa na janela e vi a cidade com a cara amarrotada de chuva. Nova Orleans tem o dom de parecer bonita até quando está triste. Respirei fundo. O esterno latejou - aquele calor ridículo bem no meio do peito - e eu jurei pra mim mesma que, se fosse ansiedade, eu ia mandar embora a ponta de pé e porta adentro. Se fosse outra coisa... a gente vê depois.
No chuveiro, a água quente brigou com a memória do toque dele. Perdi feio.
Quando fechei os olhos, o corpo lembrou do jeito que ele me encostou na parede, firme, como quem conhece força e escolhe medir. Não foi carícia. Não foi violência. Foi território. E foi suficiente pra minha pele aprender um idioma novo em segundos.
Abri o armário, peguei o jaleco, enfiei a caneta no bolso. A rotina é meu salva-vidas: passo a passo, sem olhar pro fundo. Café preto, banana amassada, chave na bolsa. Esbarrei no celular. Mensagem da madrugada, do número sem nome: Se ele tombar, você tomba junto. Escolha.
Fiz o que qualquer pessoa sensata faria: apaguei. Mentira. Print, pasta escondida, e aí apaguei.
O necrotério cheirava a hospital e segredo. Arthur estava de cara amarrada, olhos pequenos atrás do café.
- Dormiu?
- A cidade inteira roncou dentro da minha cabeça, mas eu tô de pé. - Joguei o crachá na leitora. A luz verde piscou. - Cadê o corpo da rua Bienville?
Ele desviou.
- Transferiram.
- Pra onde?
- "Instância superior". - Arthur fez aspas com os dedos. - Recebi ordem de enviar o relatório como "grande canídeo" e ponto. Sem fotografia, sem observação extra.
Ri, sem humor.
- E você vai obedecer?
- Eu vou continuar empregado, Alisson. - Ele bebeu. - Às vezes é assim.
- Às vezes não. - Passei por ele e fui direto ao arquivo. Gaveta 12, seção de evidências. Fotos. Só que a minha pasta estava vazia. Vazia.
- Quem mexeu aqui?
Arthur levantou as mãos.
- Chegou gente ontem à noite. Colete, distintivo, cara de donos do mundo. Entraram, levaram, agradeceram e tchau. Eu só fiquei segurando a caneta.
Fechei a gaveta com força demais.
- Se foram caçadores, não tinham que passar por ninguém daqui.
- Não eram caçadores. - Ele falou rápido demais. - Eram "oficiais". Sabe? Oficiais. Os que mandam até no ar.
Eu encarei o chão um segundo, respirando contido. Não tem nada que me irrite mais do que o poder que pisa devagar pra ninguém ouvir.
- Beleza. Sem fotos. Sem corpo. Sem câmera de segurança?
- Pifou. - Arthur apontou pro teto. - No horário certinho.
- Que conveniente.
Fui pra sala de autópsia. A lâmpada lembrava o estalo da noite. Abri a janela um palmo, só pra escutar a rua. A cidade faz barulho de gente mesmo quando ninguém tá falando. Coloquei as luvas, liguei o gravador e parei.
A voz não saiu.
O que me travou foi simples: eu queria mentir. Queria dizer "mordida de animal, vida que segue, boa madrugada". Mas o corpo sabe. E eu me recuso a enterrar verdade junto com gente.
Tirei as luvas, encostei as mãos na bancada fria.
- Ok. Vamos fazer do meu jeito.
Peguei o celular, abri a pasta escondida. A foto do símbolo. No arquivo, ele brilhava azul. Na tela bloqueada, comum. No editor, azul outra vez. Ajustei contraste, brilho, sombras. As linhas ficaram mais nítidas, quase vivas. Círculo incompleto, curvas no centro, garras que quase se tocam. Aquele desenho me olhava de volta. E doeu. Doeu no peito.
- Você está falando sozinha de novo - Arthur apareceu na porta, tentando brincar.
- Eu falo sozinha porque é a única pessoa aqui que não me censura.
- Hã. - Ele coçou a cabeça. - Chegou uma carta pra você.
- Carta? Em que século?
- No envelope diz "para as mãos de Alisson Morgan". Sem remetente.
Peguei o envelope. Papel grosso, cheiro de coisa cara e antiga. Abri com o canivete da gaveta porque sim. Duas linhas só, letra firme:
"Três perguntas.
Quem apagou, por quê, e quem quer que você pare?"
Revirei a folha. Nada.
- Quem trouxe?
- Um motoboy com a simpatia de um muro.
Guardei a carta no bolso. Eu, que não sou de rezar, deixei um "me ajuda a não fazer merda" no ar e voltei pro corredor. Cada lâmpada que eu passava eu encarava, lembrando da sombra em cima de mim. Quando cruzei a última porta, o esterno acendeu. Forte. Como se algo do outro lado da parede puxasse uma corda amarrada dentro de mim.
Ele.
O corpo sabe nomear antes da cabeça ter coragem. A mão tremeu em cima da maçaneta. Abri. Nada. Só o cheiro de madeira molhada e... jasmim esmagado. Meu perfume da adolescência. Engoli em seco.
- Se isso é brincadeira, tem graça não - falei - pra ninguém.
Meu telefone vibrou. Sem número. Mensagem curtinha:
"Não ande sozinha hoje."
Eu deveria ficar irritada. Fiquei. Eu deveria obedecer. Não obedeci. Peguei a bolsa, saí pela lateral da clínica, joguei o capuz na cabeça e cortei caminho pela rua menos civilizada da vizinhança - aquela onde o asfalto se lembra que já foi pântano.
Dois quarteirões depois, o mundo mordeu.
Um barulho de metal arranhando, passo pesado atrás de mim. Aquele cheiro de prata fria que eu detesto e que o nariz reconhece agora sem aula. Não olhei pra trás. Acelerei.
A chuva recomeçou miúda, as poças viraram espelho de uma cidade que não quer se olhar. Dobrei a esquina, entrei num beco, outro, chiclete de medo grudando no céu da boca. Respira, Alisson. Não corre feito presa. Anda como quem tem pressa, mas sabe o caminho.
- Morgan. - A voz veio grave, baixa, muito perto.
Virei com o coração já brigando com as costelas.
Não era Derik.
Três homens. Capuz, colete, brilho de metal onde não devia. O do meio sorriu com metade da boca.
- Você tem algo que interessa - ele disse.
- Tenho sim - falei. - Um spray de pimenta e zero paciência.
Ele riu, mas a risada veio seca. Deu um passo. Eu dei outro pra trás e bati a coluna numa porta. Trancada. Claro.
O ar ficou muito frio. De novo. A lâmpada do beco piscou duas vezes, falhou numa terceira, e eu reconheci a sensação como quem reencontra um erro: a sombra chegou primeiro.
- A gente só quer conversar - o do meio sussurrou, como se a palavra "conversar" não tivesse sido sequestrada por gente perigosa.
- Conversa então. Mas sem encostar.
Ele levantou as mãos num teatro barato.
- Fácil. A gente começa com uma pergunta: quem é o homem que te protegeu ontem?
Eu ia mentir. Ia dizer "ninguém".
A lâmpada estourou.
E, do escuro que sobrou, uma voz que eu conheço respondeu por mim:
- Pergunta errada.