Entre sombras e lembranças
img img Entre sombras e lembranças img Capítulo 2 Fique longe da minha sobrinha
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Capítulo 6 Sempre na defensiva img
Capítulo 7 Casamento por contrato img
Capítulo 8 Quero ver o Apolo img
Capítulo 9 Quero que seja amigo de Amy img
Capítulo 10 So quero um amigo... img
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Capítulo 2 Fique longe da minha sobrinha

O sábado chegou, trazendo consigo uma breve sensação de liberdade. Desci para preparar algo para comer, mas ao chegar à cozinha, fui surpreendido por uma mesa elaboradamente posta. Havia várias iguarias que eu só podia imaginar o sabor. A ponta da mesa estava ocupada por Amy, que, ao me ver, soltou um sorriso radiante. Sem perceber, retribuí o sorriso, sentindo uma inesperada sensação de calor e aceitação.

No entanto, meu sorriso desfez-se abruptamente quando Dona Izui entrou na sala. Seus olhos estavam carregados de uma fúria que eu conhecia bem. Baixei a cabeça e a reverenciei, um gesto automático de submissão que fazia parte de minha rotina diária. Eu não sabia o que esperar, mas um pressentimento ruim se formava em meu peito.

O impacto veio sem aviso. Um tapa ressoou contra meu rosto, e fiquei paralisado, atônito. O grito de Amy foi o único som que quebrou o silêncio do momento. Antes que eu pudesse reagir, outro tapa me atingiu, seguido de um chute. A dor era intensa, mas a impotência de não poder fazer nada a tornava ainda mais aguda. Minha sorte era que Dona Izui estava envelhecendo, e seus golpes não tinham mais a força de outrora.

Ajoelhei-me no chão, esperando pela sequência inevitável de repreensões. Dona Izui permaneceu em silêncio, e esse silêncio era, de fato, mais angustiante do que qualquer castigo físico. Os minutos pareciam se arrastar como horas, e a tensão no ar era palpável.

Finalmente, ela rompeu o silêncio com uma voz carregada de desprezo e rancor.

- Não quero que chegue perto da minha sobrinha - ela começou, sua voz cortante como uma lâmina. - Ela é uma Harper, uma das famílias que mantém essa cidade viva, e você? Não passa de lixo. Então ponha-se no seu lugar.

As palavras dela eram como uma sentença, fria e cruel. Sentia-me encolhido sob o peso daquelas palavras, a humilhação misturada com uma dor física que parecia se fundir com a dor emocional. Amy, que antes havia representado uma promessa de algo melhor, agora estava associada ao meu sofrimento. A diferença de status entre nós, tão brutalmente exposta por Dona Izui, era um lembrete cruel da minha própria insignificância.

Enquanto Dona Izui se afastava, os olhos de Amy se encontraram com os meus. Havia uma tristeza profunda em seu olhar, um reflexo da dor que eu sentia. Em meio ao caos, o calor daquele sorriso agora parecia uma memória distante, quase uma ilusão. O silêncio que se seguiu era esmagador, e a solidão que me acompanhava parecia mais implacável do que nunca.

Passou-se um mês desde que Dona Izui, com sua autoridade implacável, me repreendeu severamente por minha ousadia. O peso de minha insubordinação dobrou a carga de meu trabalho, e como punição, só me é permitido adentrar a casa após as 22 horas. Desde então, vagueio pelas ruas desertas da cidade, um espectro solitário, observando o fluxo incessante da vida ao meu redor.

As noites são longas e cheias de visões transitórias: casais adolescentes de mãos dadas, adultos cansados retornando de seus labores diários, e até mesmo trombadinhas esgueirando-se pelas sombras. Cada figura é um lembrete cruel de uma normalidade que me foi negada.

Hoje, meus passos me conduziram até as barracas iluminadas do mercado noturno. O aroma inebriante de lamen fresco assaltou meus sentidos, evocando memórias há muito enterradas. Por um breve e doloroso instante, lembrei-me de minha mãe na cozinha, preparando aquela iguaria que aquecia tanto o corpo quanto a alma. Minha barriga roncou alto, um protesto de fome que ecoava minha desolação. Mas, desprovido de um único centavo, não pude saciar essa necessidade básica. Dona Izui, em sua severidade, retirou até o mínimo que me concedia como sustento.

Enquanto a fome e a melancolia se entrelaçavam em meu peito, arrependimento profundo tomava conta de mim. Lamentei ter me permitido abrir meu coração àquela garota. Agora, o preço de minha imprudência pesa sobre meus ombros como uma carga invisível, e cada noite vagando pela cidade é um lembrete cruel do erro cometido.

A lua, testemunha silenciosa, observava meu tormento, lançando sua luz pálida sobre minha figura solitária.

Enquanto a escuridão abraçava a catedral imponente, olho para o relógio: os ponteiros marcam 21:30. O sino distante ecoa na noite, lembrando-me do tempo que inexoravelmente avança. Viro-me, os passos pesados e arrastados traçam um caminho solitário de volta para "casa". Cada pisada ressoa nos becos desolados, acompanhada apenas pelo murmúrio do vento.

No trajeto, minha mente, inquieta e atormentada, vaga até ela. Sua imagem delicada e doce surge, perturbando minha consciência. Como estará ela agora? Será que também enfrentou algum castigo? A ideia de sua gentileza sendo esmagada por reprimendas por minha causa aperta meu coração como um punho de ferro. Sinto a culpa crescer em mim, uma sombra sufocante que me acusa silenciosamente: fui incoerente, precipitado.

Quem sou eu para exigir compaixão? Minha própria existência se dissolve em um mar de incertezas. Não vivo mais, apenas existo, arrastado pela correnteza do tempo, aguardando o momento em que serei libertado deste mundo. A perspectiva de minha partida não me entristece; ao contrário, há uma estranha paz em saber que não deixarei ninguém para trás, que meu desaparecimento será como a névoa dissipando-se ao amanhecer. Ninguém se lembrará de mim, ninguém chorará minha ausência. E isso, de certa forma, me consola .

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Cheguei ao meu destino e, ao abrir a porta, o silêncio dominava o ambiente com uma intensidade quase palpável. A ausência de louça na pia e a casa prontamente organizada me surpreenderam. Estranhei as luzes ainda acesas, um sinal de que algo estava fora do comum. Meu coração acelerou com um pressentimento desconfortável, uma sensação de que algo ruim estava prestes a acontecer.

Caminhei pelas sombras da casa, passando pela sala até chegar às escadas. Lá, um detalhe me chamou a atenção: malas estavam prontamente feitas, alinhadas e prontas para partir. O medo se solidificou em meu peito. Será que Dona Izui estava planejando viajar? O som dos meus passos parecia ecoar em um silêncio opressivo. Quando comecei a subir, uma presença ameaçadora fez-se sentir atrás de mim. Era como se um peso invisível tivesse se instalado sobre meus ombros.

Virei-me e vi Dona Izui, sua presença imponente como uma tempestade que se aproxima. Com um gesto automático, reverenciei-a, tentando ocultar a crescente inquietação.

- Pegue suas coisas - ela ordenou com uma frieza cortante. - Você irá para um internato.

As palavras dela soaram como um golpe físico, um choque que quase me fez vacilar. Meus olhos se arregalaram em choque, tentando encontrar alguma mentira, algum sinal de que aquilo não era verdade. Mas seus olhos, frios e implacáveis, não ofereciam nenhuma pista de desonestidade. Eram apenas a mais pura expressão da realidade que eu estava prestes a enfrentar.

- Senhora, eu prometo não ser mais imprudente - implorei, desesperado, caindo aos seus pés. - Não direi mais uma única palavra sem a sua permissão, minha senhora.

A resposta foi brutal e direta. Um chute me fez cair ao chão, a dor penetrando em meu corpo e alma.

- Não ouse implorar, seu verme - ela disse com desdém. - Alguns anos no internato serão ótimos para você.

Dona Izui se virou, a frieza de suas palavras pairando no ar como um veneno.

- Pense pelo lado bom, quando sair de lá, será agraciado pelo governo.

O peso das suas palavras esmagava meu coração. A ideia de ir para o internato, um lugar que eu sabia ser um verdadeiro inferno, era insuportável. A imagem das ruas frias em pleno inverno parecia agora uma opção mais aceitável, um refúgio comparado ao que estava por vir.

Com um sentimento de derrota total, peguei minhas malas e comecei a sair. Antes de deixar aquele lugar que, apesar de tudo, um dia considerei meu lar, me virei para dar uma última olhada. Na janela, com um olhar vago, estava Amy. Ela não me via, seus olhos perdidos em um mundo distante, talvez em um sonho ou uma realidade paralela onde eu não existia.

Eu sussurrei para mim mesmo, na esperança de que ela pudesse ouvir, mesmo que estivesse em outro universo: "Talvez um dia nos reencontraremos em uma vida onde sejamos compatíveis, minha Lua."

Com o coração pesado e uma sensação de que estava deixando para trás não apenas um lar, mas uma parte de mim mesmo.

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Parado em frente ao imenso portão do internato, sinto minhas pernas tremerem sob o peso do medo. O portão, robusto e imponente, ergue-se diante de mim como um muro intransponível de incertezas e temores. Meus olhos percorrem as suas barras de ferro forjado, cujas sombras parecem se estender e engolir a esperança que ainda tento manter acesa.

O medo me consome lentamente. Tudo o que sei sobre o internato são rumores distorcidos e fragmentos de histórias aterrorizantes que ouvi ao longo dos anos. Ninguém que tenha saído de lá voltou para contar o que realmente se passa dentro daqueles muros. As palavras de Dona Izui ainda ressoam em minha mente, uma sentença cruel que ecoa em meu coração: "Alguns anos no internato serão ótimos para você."

Tento buscar coragem em cada respiração profunda, cada inalação de ar frio que parece cortar meus pulmões como lâminas afiadas. A sensação de que a mudança é inevitável paira sobre mim, uma sombra ameaçadora que promete transformar a pessoa que eu sou. Mesmo sem ter encontrado a coragem que procurava, meus pés se movem, arrastando-me em direção ao portão que se abre lentamente, como se estivesse engolindo minha determinação.

A sensação de atravessar o portão é como adentrar um novo mundo, um lugar onde as regras são desconhecidas e o futuro é um mistério obscuro. O ar ao meu redor parece mais denso, carregado de uma expectativa sombria que me faz sentir como se estivesse entrando em um pesadelo ao qual não posso escapar.

Não sei o que me espera aqui dentro, mas uma sensação profunda e instintiva me diz que nada será como antes. O mundo que deixo para trás, com suas dores e esperanças, parece estar se fechando como um livro, e o que está por vir será escrito em páginas em branco, aguardando ser preenchido com experiências que me transformarão para sempre.

Com um último olhar para o mundo que conhecia, que ainda guardava fragmentos de uma vida que já se foi, avanço para o interior do internato. O que quer que me aguarde além desses portões, sinto que será uma jornada que moldará não apenas minha vida, mas também quem eu sou.

Continua..........

            
            

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