Meus pensamentos vagavam pelas profundezas da minha memória, tentando recuperar fragmentos do que um dia fui. Havia buracos na minha mente, lacunas que se recusavam a ser preenchidas. Talvez os traumas tivessem corroído minhas lembranças, apagando qualquer vestígio de felicidade que um dia conheci. Tudo o que restava eram lembranças de dor, humilhação e da desobediência que me trouxe a este inferno.
A imagem dela surgia como um espectro no meu pensamento, a figura da pessoa a quem desobedeci. Não consigo recordar seu rosto com clareza, mas a sensação de desapontamento e ira em seus olhos está gravada em minha alma. Sei que a desobedeci, que quebrei a confiança de quem me deu abrigo. O que fiz exatamente permanece um mistério, mas o peso da culpa e da vergonha é um fardo constante.
Enquanto arrumava minhas poucas posses, o coração batia descompassado. A expectativa de ver o mundo além das paredes que me aprisionaram por tanto tempo era intoxicante, mas o medo do desconhecido também pairava como uma nuvem negra. Eu ansiava pela liberdade, mas sabia que ela vinha com seus próprios desafios e perigos.
Levantei os olhos para o pequeno vislumbre do céu noturno visível pela janela, sentindo uma conexão inexplicável com a lua. Ela parecia olhar para mim com compaixão, talvez entendendo a dor e a esperança que se mesclavam em meu coração.
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Ao fim da tarde, quando as sombras começavam a se alongar, finalmente cheguei à imponente mansão dos Harper. O internato onde passei tantos anos era isolado da cidade, um lugar onde o tempo parecia ter parado, e agora, diante das grandiosas paredes da mansão, sentia uma mistura de ansiedade e expectativa. Ao me aproximar, a estrutura parecia ainda maior, com suas torres altivas e jardins bem cuidados, tudo exalando uma aura de poder e tradição.
Minha primeira tarefa foi me apresentar ao capitão da guarda do governador, Apolo Belyk. Ele me recebeu com um sorriso singelo, um gesto inesperado para alguém com uma aparência tão ameaçadora e fria. Seu rosto parcialmente coberto e seu olhar penetrante sugeriam uma personalidade dura, mas aquele sorriso contradizia a imagem que ele projetava. Talvez houvesse mais nele do que aparentava, pensei, tentando decifrar o enigma daquele homem.
Após a breve apresentação, Apolo me conduziu por um tour pela mansão, apresentando-me aos outros guardas e aos serviçais com quem inevitavelmente cruzaria. A atmosfera era de respeito e formalidade, mas também de uma curiosa gentileza. Todos me trataram bem, com uma cordialidade que parecia, por vezes, exagerada. Senti-me um pouco desconfortável, como se estivesse pisando em terreno instável, incapaz de discernir a autenticidade nas palavras e gestos daqueles ao meu redor.
Os aposentos que me foram designados eram modestos, mas confortáveis, um alívio depois das condições espartanas do internato. Enquanto desfazia minha bagagem, não pude deixar de refletir sobre o contraste entre a minha nova vida e o passado que ainda me assombrava. O luxo da mansão, a aparente gentileza dos outros guardas, tudo parecia um mundo à parte do sofrimento e da humilhação que eu conhecera.
Enquanto a noite caía e a mansão se silenciava, sentei-me à janela, olhando para a lua que agora brilhava no céu. Sua luz prateada banhava os jardins, conferindo-lhes uma beleza etérea. O fascínio que sentia pela lua persistia, uma constante em meio à turbulência da minha vida. Talvez, de alguma forma, ela simbolizasse a esperança de que, mesmo nas trevas, ainda houvesse uma luz capaz de iluminar o caminho.
Com o coração dividido entre a desconfiança e a esperança, sabia que esta nova etapa da minha vida seria um teste constante.
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Outro dia acabava de comecar e hoje eu seria levado até a filha do governador e, a partir desse momento, assumiria meu posto como guarda-costas oficial. A excitação e a responsabilidade se entrelaçavam em meu peito, formando um nó apertado de ansiedade e expectativa.
Vesti minha farda com a reverência de um ritual sagrado, sentindo o peso simbólico do uniforme em meus ombros. Cada peça de meu armamento foi cuidadosamente ajustada, como se cada movimento fosse uma promessa silenciosa de proteção e dedicação. Fui ao encontro de Apolo, meu superior, que com olhos penetrantes e voz firme, detalhou cada aspecto da missão. Suas palavras eram como juramentos gravados em minha mente: proteger a primogênita dos Harper com minha própria vida.
Enquanto ele falava, uma onda de determinação inundava meu ser. Não temia a perspectiva de sacrificar minha vida por ela; ao contrário, abraçava a ideia com um fervor quase sagrado. Morrer salvando alguém era, para mim, o auge do heroísmo, um ato supremo de abnegação e coragem.
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Chegamos à sala do governador, um ambiente que emanava rusticidade e elegância em cada detalhe. As paredes de madeira polida, adornadas com tapeçarias antigas, refletiam a autoridade e superioridade do homem que ali governava. Ao adentrarmos, Apolo e eu nos curvamos em reverência, conscientes do poder que emanava daquele espaço.
- Trouxe o novo guarda-costas, meu Senhor - disse Apolo, mantendo-se curvado, sua voz carregada de deferência.
- Apresente-se, por favor - a voz do governador, firme e imponente, ressoou na sala, enviando um arrepio gélido pela minha espinha. Era como se qualquer movimento em falso pudesse determinar meu destino, vida ou morte.
- Tayler ... - comecei a falar, mas fui abruptamente interrompido por uma tosse suspeita de Apolo.
Antes que pudesse me recompor, uma voz doce e delicada preencheu o ambiente, como o canto de um anjo descendo dos céus.
- Olá, Tayler - disse ela, e por um instante, senti-me transportado a um reino celestial, onde apenas a pureza e a serenidade reinavam.
Meu coração acelerou e uma curiosidade avassaladora tomou conta de mim. Queria desesperadamente ver o rosto de quem possuía uma voz tão encantadora, mas o temor de ser repreendido pelo governador era maior. Em um gesto de respeito e submissão, abaixei-me ainda mais em minha reverência, mantendo os olhos fixos no chão.
Cada fibra do meu ser ansiava por olhar para cima, por encontrar aqueles olhos que eu imaginava serem tão brilhantes quanto sua voz. Porém, a responsabilidade do meu novo papel, a missão que me fora confiada, exigia autocontrole e disciplina. Permaneci curvado, esperando pelo próximo comando.
- Olhe para mim - a voz imponente do governador soou, tirando-me do breve transe em que me encontrava. - A partir de hoje, estou confiando meu bem mais precioso em suas mãos. Espero que faça um bom trabalho.
- Eu farei, meu Senhor - respondi com firmeza, embora a curiosidade queimasse dentro de mim. Ignorei a garota próxima a mesa, imaginando que, se sua voz era tão encantadora, sua aparência deveria ser ainda mais deslumbrante.
- Apolo, acompanhe-os hoje para que ele esteja a par de tudo. Estão dispensados - o governador ordenou, levantando-se com uma autoridade inquestionável.
Nos reverenciamos profundamente, e pude perceber que ele saiu sem ao menos se despedir da filha, algo estranho considerando que ele a havia descrito como seu bem mais precioso.
- Senhorita Harper, aonde deseja ir hoje? - perguntou Apolo com uma voz doce e afável, um tom que me surpreendeu e intrigou, mas que escolhi ignorar.
- Veremos - respondeu ela, sua voz tão suave e melodiosa que parecia acariciar o ar. - Ainda não me decidi.
Finalmente, criei coragem e a olhei. Meu coração quase saltou pela boca. Ela era extraordinariamente bela, seus olhos brilhavam com a intensidade de mil estrelas. Engoli em seco, sentindo-me transportado para um mundo etéreo onde a realidade parecia distante e nebulosa. Tentei me recompor, beliscando-me disfarçadamente e inclinando-me em reverência.
- Estou às suas ordens, Senhorita.
- Poderia me chamar apenas de Amy? Não me sinto confortável com o "Senhorita" - ela disse com um sorriso que quase me fez esquecer minha posição e concordar sem hesitar.
- Sinto muito, Senhorita, mas não acho adequado, já que minha função é ser seu guarda-costas, e não um amigo íntimo - respondi, tentando manter a compostura, mas percebendo, tarde demais, que minhas palavras soaram mais duras do que eu pretendia.
- Entendi - ela murmurou, e o brilho em seu sorriso desapareceu, deixando-me com um sentimento de culpa esmagadora.
Senti-me um monstro por ter apagado aquele brilho dos olhos dela, mas sabia que precisava ser racional. Tinha um dever a cumprir, uma missão que exigia minha total dedicação e profissionalismo.
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O dia transcorreu com uma tranquilidade que quase beirava a monotonia, um sossego pontuado apenas pelas tarefas diárias. Acompanhei a filha do governador ao lado de Apolo, que parecia desfrutar de uma intimidade incomum com a mesma. Entre risadas e sussurros, sua proximidade revelava uma posição de confiança e respeito, sugerindo um vínculo profundo e talvez vital na estrutura da guarda.
Ao cair da tarde, nossa última tarefa foi escoltar a senhorita Harper de volta à sua residência. Depois de garantir sua segurança, caminhei devagar em direção ao meu quarto, ansiando por um momento de paz. No entanto, Algum tempo depois que cheguei, a batida na porta interrompeu meus pensamentos.
- Olá - a voz familiar de Apolo ressoou quando abri a porta.
- Oi... Aconteceu alguma coisa? - perguntei, sentindo um súbito aperto no peito.
- Na verdade, você irá mudar de quarto - ele respondeu com seu sorriso característico, aquele que sempre parecia esconder segredos. - Amy se sentirá mais segura se você estiver no quarto ao lado, e seu pai faz tudo que ela quer.
- Como é? - a surpresa ecoou em minha voz, incapaz de esconder meu espanto.
- Você pode se mudar amanhã. Azrael ordenou que organizassem o quarto e quer conversar com você antes do seu horário de trabalho. Até mais.
Ele partiu como se tivesse acabado de discutir o clima, deixando-me atordoado com a reviravolta. A ideia de me acostumar com essa nova dinâmica parecia quase insuportável. Mesmo assim, deitei-me e, apesar das preocupações que rodopiavam em minha mente, consegui pegar no sono, ciente de que perder minha noite de descanso não ajudaria em nada no dia que estava por vir.
Continua........