Alguns minutos atrás, no momento em que Eulalia disse que iria com os lobos, o alfa não perdeu tempo. A confirmação dela foi uma mera formalidade claro, afinal, ele a levaria de qualquer jeito. Alaric a colocou sobre seus ombros como um saco de batatas, então começou a caminhar sem que ela sequer se despedisse dos seus, afinal, isso não importava para ele.
Agora estava se perguntando se, caso tivesse deixado-a se despedir, ela gritaria menos...
Alaric soltou um rosnado grave, mas não respondeu. Os olhos fixos no caminho à frente, desviando de galhos baixos e raízes que se sobressaiam da terra enquanto os uivos dos lobos que seguiam a frente dele anunciavam que finalmente os ventos estavam soprando ao seu favor. A matilha seguia em êxtase, celebrando como se o próprio destino tivesse sorrindo para eles. O alfa, o mais poderoso lobo de Valtheria, finalmente havia encontrado sua companheira, um ano antes de sua maldição ser eterna.
Havia uma chance, afinal!
Eulália, no entanto, não compartilhava da mesma animação. As mãos agora agarravam os ombros de Alaric, tentando, em vão, forçar alguma estabilidade na estranha posição em que estava. A pele dele estava quente sob seus dedos, e ela sentia cada músculo do homem se mover sob seu toque com precisão animalesca.
Nunca havia visto um homem nu, sequer havia encostado num homem daquele jeito e tudo era tão constrangedor! Aquilo a irritava ainda mais.
"Você está pelado! Isso é indecente! Não pode simplesmente andar nu por aí como se fosse normal!" gritou novamente, corando fortemente ao se dar conta da proximidade nada apropriada entre seu rosto e... da firme bunda do alfa.
"Pelos deuses, isso é um absurdo!" continuou, estremecendo. "Minha cara está literalmente na sua... na sua... bunda! Isso é absurdo! Me coloque no chão! Me coloque no chão agora!"
Alaric bufou, sem diminuir o ritmo da corrida.
"Você fala demais", respondeu ele, a voz grave como um trovão abafado.
"E você é um bruto sem nenhuma educação!" retrucou ela, empurrando-o com força. "Me ponha no chão! Já!"
"Se eu te colocar no chão, vai fugir como uma criança birrenta", o tom de Alaric era irritado, quase furioso e parecia dizer o obvio para a garota que ainda se debatia. "E, sinceramente, estou sem paciência pra suas crises de histeria humana."
"Crises? Você me obrigou a vir com você, ameaçou minha vila! Isso aqui não é uma caminhada no bosque, seu... seu maluco! Você é doente!"
Os lobos que os acompanhavam riram, em uivos curtos, como se entendessem cada palavra do embate que acontecia entre os dois. O som da matilha correndo, dos galhos partindo sob as patas, e o cheiro selvagem da floresta formavam um cenário que mais parecia retirado de um pesadelo para Eulália, mas para o alfa que a carregava, era como o inicio de um sonho, um sonho que o libertaria de sua maldição e quem sabe devolveria o coração ao seu peito.
Após longos minutos de corrida, a paisagem começou a mudar. A floresta tornava-se menos densa, dando lugar a uma clareira ampla, onde erguiam-se as construções da alcateia. Eram casas de pedra com telhados escuros, espalhadas ao redor de uma imensa construção central: o castelo do alfa, uma fortaleza esculpida na rocha, adornada por estandartes negros com símbolos antigos da linhagem de Alaric.
Aquele era o lar das lendas, o local que os humanos acreditavam que não existia, se erguendo a vista de Eulália como uma assombração.
Os lobos diminuíram a velocidade conforme se aproximavam da entrada da vila, um silêncio respeitoso tomou conta do grupo ao passarem pelos portões altos. Eulália levantou o rosto, os olhos arregalados diante da imponência da fortaleza, nunca tinha visto nada como aquilo. Mesmo ofegante e suada, não conseguiu evitar um arrepio de admiração, embora fosse um arrepio banhado de medo.
"Pelos deuses... onde eu estou?" murmurou, sem esperar resposta.
Alaric a carregou até o centro da praça de pedras polidas que dava acesso ao castelo. Alguns membros da alcateia saíam das casas, parando suas atividades ao ver o alfa chegar com uma humana jogada como um saco de farinha no ombro. Olhares curiosos, surpresos, até escandalizados se voltaram para ela.
"Por favor... me coloca no chão. Estão todos olhando!" sussurrou Eulália, aflita, tentando esconder o rosto com as mãos.
"Que olhem", respondeu Alaric, impassível. "Eles precisam entender quem você é."
"Eu não sou nada sua!" a garota retrucou, erguendo o rosto com os olhos faiscando de indignação. "Sou uma mulher livre! Não um prêmio de caça!"
Alaric parou diante da escadaria do castelo, finalmente a colocando no chão, mas com a mesma delicadeza com que se larga um saco de grãos. Eulália se desequilibrou, tropeçando para trás, caindo com a bunda no chão, sentada diante do alfa, os olhos furiosos e o rosto em chamas. Mesmo assim, com toda a coragem que ainda lhe restava, levantou a cabeça e o encarou.
Alaric, nu, altivo, tinha a pele coberta por pequenas cicatrizes e, em seu peito, a maior delas que o lembrava todos os dias do que era e do que procurava. Eulalia via bem no meio de seu peito, uma cicatriz circular com partes levemente saltadas da pele, veias negras que se espalhavam levemente por seu peito, mesclando-se a pele levemente bronzeada até sumirem.
Ao redor deles, um grupo de pessoas se reuniam, lobos da alcateia de Alaric. Havia mulheres jovens que olhavam para Eulalia com curiosidade homens que comemoravam a vitoria do alfa e o fato dele finalmente encontrar sua companheira, aquele era um dia de festa para todos ali, ou quase todos.
"Você é minha companheira, e este é o seu novo lar. Aceitar ou tentar lutar contra não vai mudar os fatos, garota", disse o alfa, sua voz firme ecoando por toda parte;.
Eulália trincou os dentes.
"Eu nunca vou aceitar você, seu monstro!"
Monstro... Não seria a primeira pessoa que o chamaria de monstro, e certamente também não seria a ultima.
O alfa arqueou uma sobrancelha, como se estivesse mais intrigado do que irritado. Então, sem mais uma palavra, virou-se e começou a subir as escadas do castelo.
"Vamos" disse ele, sem olhar para trás. "Você pode subir sozinha ou eu posso carregá-la de novo."
Eulália permaneceu imóvel por um segundo, respirando rápido, os olhos passeando por rostos desconhecidos que a observavam como se ela fosse um bicho exótico. Então, com o que restava de orgulho, ergueu o queixo e se levantou, o seguindo, mesmo que cada passo parecesse mais pesado que o anterior.
As portas pesadas do castelo se abriram com um ranger surdo, revelando um corredor iluminado por tochas presas à parede de pedra escura. O interior do castelo de Alaric era tão imponente quanto sua fachada: grandes tapeçarias com brasões antigos cobriam as paredes, e os passos ecoavam sobre um chão de pedra polida. Eulália entrou hesitante, forçada a acompanhar o ritmo acelerado de Alaric.
Aos poucos, ela foi ficando para trás, afinal, ele andava rapido demais para as pernas delicadas da menina, que ainda estava abismada com a paisagem ao redor. Tudo o que conhecia era uma vila simples, nunca foi acostumada com aquele luxo, nem com lobisomens, então tudo era novo demais.
Alaric percebeu que sua companheira havia ficado para trás e, quando se virou a viu encarando uma grande tapeçaria com o simbolo de sua alcateia. Ele a observou por alguns instantes seus olhos vermelhos deslizando por cada pedacinho da jovem como quem admira a mais bela das obras de arte, então o lobo piscou algumas vezes, sentindo seus instintos ameaçarem se descontrolar. Queria marcá-la, mas ainda não... Não podia esquecer das exigências da deusa...
"Se não encontrar essa companheira nos próximos 500 anos, você jamais conhecerá o amor que é destinado a você. Nenhuma loba poderá, então, gerar seus filhotes e sua linhagem se perderá, como folhas levadas pelo vento. Você será condenado a vagar eternamente, um ser solitário e desprovido de toda a glória que seu sangue e sua crueldade poderiam ter garantido!"
Ao lembrar das palavras de Sidonia, o alfa rosnou caminhando a passos duros até Eulália e a pegando pelo braço, puxando-a em direção a escadaria forçando-a a quase correr pára o acompanhar.
"Está me machucando, seu bruto!", ela protestou, tentando se soltar.
"Então ande direito", ele retrucou, sem nem virar o rosto.
Subiram uma escadaria em espiral que parecia não ter fim. A cada lance, Eulália se sentia mais distante de qualquer esperança de liberdade. O castelo era silencioso, mas a tensão que pairava entre os dois preenchia cada canto. Ela sentia a pele arrepiada não apenas pelo frio da pedra, mas pelo medo do desconhecido.
No último andar, havia uma porta dupla, entalhada com símbolos antigos que Eulália não reconheceu. Alaric a empurrou e entrou com ela, revelando um quarto absurdamente amplo. As paredes eram cobertas por tapeçarias negras, havia uma enorme lareira acesa num dos cantos, jogando sua luz\ sobre um espeço e fofo tapete de peles. Uma cama imensa, de madeira entalhada, dominava o centro do cômodo, cercada por cortinas grossas. À frente da lareira, havia poltronas escuras, livros empilhados, uma mesa com um conjunto de chá, flores aqui e ali, parecia um quarto especialmente preparado para uma mulher importante.
Ela.
Alaric soltou o braço de Eulália de forma brusca.
"Este será seu quarto."
Eulália deu um passo para trás, encarando o espaço como se ele fosse uma cela dourada. Ela cruzou os braços, o rosto completamente corado quando percebeu que ele ainda estava nu, parado à sua frente como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
"Por tudo o que é sagrado, você pode... colocar alguma coisa?!" exclamou, virando-se rapidamente e tapando os olhos com a mão. "É indecente! Um homem nu, dentro de um quarto, com uma moça?! Isso é absurdamente desrespeitoso, sabia?"
Alaric franziu o cenho, sem entender o drama. Apoiou uma das mãos no quadril e respondeu com naturalidade:
"Costume humano. Entre os lobos, não há vergonha alguma em não usar roupas quando acabamos de retornar a forma humana."
"É claro que há vergonha! Que tipo de bárbaros são vocês?!" ela gritou, ainda de costas, com as bochechas em chamas. "Se você pretende me manter aqui, ao menos respeite o mínimo de decência!"
Alaric suspirou, caminhando lentamente até uma arca no canto do quarto. Pegou uma calça escura de tecido grosso e a vestiu sem pressa, como se estivesse apenas fazendo um favor. Depois, falou:
"Você é minha companheira, Eulália. Este é seu lar agora, vai se acostumar."
"Este lugar nunca será meu lar!" ela cuspiu as palavras, girando para encará-lo com os olhos irritados. "Eu não sou sua coisa nenhuma! Não sou um objeto pra ser arrastado até um castelo e trancada num quarto como um troféu de caça! Você não pode simplesmente... me tomar como se eu não tivesse vontade própria!"
Alaric a olhou por um instante. O rosto dele era uma máscara de pedra, mas algo em seus olhos se estreitou, como se aquela reação não o surpreendesse, mas também não o agradava. No fundo, estava feliz por sua companheira não ser uma coisinha submissa e sem vontade propria, mas também se sentia irritado com o fato dela não o obedecer em momento algum.
"Você está aqui porque o destino assim quis. A deusa destinou você a mim, não há como fugir disso, eu não vou deixar que fuja. Se acostume com sua nova vida."
"Pois eu preferia que a Deusa tivesse me esquecido!", ela gritou, a voz falhando de tanta raiva.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Alaric não respondeu, apenas caminhou até a porta, abriu-a e lançou um último olhar para a jovem, agora ofegante e com os olhos marejados. Em vez de qualquer palavra de conforto, ele simplesmente fechou a porta com força e girou a chave, trancando-a do lado de fora.
O som do trinco ecoou pelo quarto como uma sentença.
Eulália correu até a porta, começando a esmurrar a madeira com toda força que tinha, gritando:
"Você não pode fazer isso! Me tire daqui! Me tire daqui agora, seu desgraçado!"
Mas não houve resposta.
Do lado de fora, Alaric desceu dois degraus e parou, a mão ainda na maçaneta. Respirou fundo, lutando contra a vontade de arrombar a porta de volta e sacudi-la até que ela entendesse. Mas em vez disso, cerrou os punhos, contendo o instinto que rugia dentro dele.
"Essa menina é como um furação", disse uma voz atrás dele.
Era Mika, seu beta, surgindo das sombras do corredor. O olhar dele estava divertido, embora tentasse disfarçar com uma expressão séria.
"Ela é mais feroz que muitas lobas da alcateia", continuou, com um meio sorriso. "Vai dar trabalho."
Alaric lançou um olhar duro a Mika.
"Ela é teimosa. Arrogante. Grita demais."
"Mas você a queria, não é?" Mika cruzou os braços. "A deusa mostrou o caminho, e ela não escolhe errado."
"Sidonia continua me punindo, mesmo depois de 499 anos..."
Alaric rosnou baixo e se afastou da porta, os olhos voltando ao tom escuro e ameaçador.
"Ela vai ceder", disse, a voz grave cortando o ar como aço. "Só não sabe disso ainda."
E, sem olhar para trás, o alfa caminhou pelo corredor de pedra, deixando para trás os gritos abafados da garota que, naquele instante, odiava cada parede daquele castelo, e mais ainda, odiava aquele homem que o habitava.