Calcei meus tênis gastos, prendi o cabelo em um coque apressado e saí pelas ruas estreitas. Correr pela cidade logo cedo se tornou meu pequeno ritual, uma forma de agradecer pela vida simples que levo, e de lembrar o quanto amo esse lugar.
As casinhas coloridas, o cheiro de pão fresco vindo da padaria da Dona Zuleica, as guirlandas nas portas... cada detalhe parecia me abraçar.
O som do meu passo ecoava no calçamento molhado de orvalho, e eu respirava fundo, sentindo o aroma da terra úmida misturado ao perfume das flores que o Seu Ernesto insistia em cuidar, mesmo no frio. Ele sempre dizia que flores no inverno eram um sinal de esperança - e eu acreditava.
Passei pela pracinha central, onde a prefeitura já montava o grande pinheiro de Natal. Clara, minha melhor amiga, estava ali, enrolada num cachecol vermelho, dando ordens para dois rapazes que penduravam luzes douradas. Ela me viu e acenou, sorrindo como quem carrega energia de sobra mesmo antes das sete da manhã.
- Isaaaaa! - ela gritou, com aquela voz animada que parecia ecoar por toda a cidade. - Depois passa no coreto, precisamos de ajuda com os enfeites!
- Eu passo, prometo! - respondi, rindo.
Continuei a correr, mas dei uma última olhada pra ela. Clara Vasconcellos era assim mesmo: intensidade pura. Se o Natal fosse uma pessoa, seria ela.
Dobrei a esquina que levava ao rio e vi o reflexo das luzes nas águas calmas. Ali era meu ponto preferido. Eu parava, fechava os olhos e pensava em como minha vida, embora simples, era exatamente o que eu queria.
Às vezes me perguntava como seria morar em uma cidade grande, ou seguir carreira em algum lugar distante. Eu canto desde pequena, mas nunca imaginei que o mundo precisasse ouvir minha voz. Aqui, entre montanhas e sorrisos conhecidos, eu já me sentia suficiente.
Quando o sol finalmente rompeu o véu de neblina, voltei para casa. O Hotel Monteiro, onde moro e trabalho com meus pais, ficava no alto da colina, cercado por pinheiros e com vista para toda a cidade. O prédio é antigo, de madeira clara e varandas floridas. Um lugar que mais parece ter saído de um cartão-postal.
Assim que entrei, o cheiro de canela me envolveu.
Mamãe estava na cozinha, preparando os biscoitos natalinos que os hóspedes tanto amavam. Helena Monteiro tem mãos de fada e o dom de fazer qualquer um se sentir em casa.
- Bom dia, meu amor - ela disse, sem olhar pra mim, ocupada demais decorando as forminhas. - Dormiu bem?
- Dormi. Só acordei cedo pra correr. A cidade está linda, mãe. Clara está terminando os preparativos da praça.
Ela sorriu, e eu percebi o cansaço em seus olhos. A época do Natal era a mais movimentada do ano no hotel, e ela se desdobrava entre a cozinha, as reservas e as decorações.
- Seu pai já foi buscar lenha - avisou. - Disse que vai consertar a lareira antes da noite.
Papai. Francisco Monteiro - ou Chico, como todo mundo chama. O homem mais gentil que eu conheço. Brinca com as crianças, conversa com os hóspedes como se fossem velhos amigos e sempre tem uma história nova pra contar.
Enquanto colocava a mesa para o café, ouvi o barulho do carro dele chegando. Ele entrou pela porta dos fundos, batendo as botas na soleira e trazendo o cheiro da manhã junto com ele.
- Bom dia, minhas meninas! - disse, tirando o gorro e me dando um beijo na testa. - Trouxe lenha boa e seca. Hoje à noite o fogo vai cantar bonito.
- Cantar bonito? - brinquei. - Quem canta bonito aqui sou eu, pai.
Ele riu, e mamãe balançou a cabeça, fingindo reprovação.
- Isadora, você devia cantar mais. - disse ele, sério por um instante. - A cidade toda se encanta quando ouve sua voz.
- Eu canto só pra mim - respondi, desviando o olhar. - E pro Natal, talvez.
Cantar em público ainda me deixava nervosa, mesmo depois de tantos anos ajudando no coral da igreja. Mas papai sempre insistia que a música era um dom, e que dom guardado perdia o brilho.
Depois do café, fui para a recepção do hotel. Gosto de observar as reservas, organizar as chaves, sentir o cheiro do pinheiro enfeitado no saguão. Ali, cada detalhe tem história: o carpete gasto pelas malas de viajantes, o sino dourado que papai trouxe de uma feira antiga, e as fotos nas paredes, com registros de famílias que passaram o Natal conosco ao longo dos anos.
O telefone tocou.
- Hotel Monteiro, bom dia! - atendi, animada.
Era Dona Zuleica, da padaria.
- Isadora, querida! Manda o Chico passar aqui, tenho pão de mel fresquinho e preciso devolver a travessa da sua mãe!
Sorri.
- Pode deixar, Dona Zuleica. E guarde uns pra mim, tá?
Ela riu do outro lado da linha.
- Se sobrar, guardo!
Desliguei e, por um instante, fiquei olhando a neve começar a cair lá fora - os primeiros flocos da temporada. A cidade parecia coberta por um véu de magia. As crianças corriam na praça, o padre Antônio acenava da igreja, e o sino do relógio do Seu Ernesto marcava as oito horas.
Peguei meu casaco e fui até a varanda, onde papai ajeitava uma estrela dourada no topo do pinheiro do hotel. Ele sempre fazia isso com um orgulho quase infantil.
- Fica bonita, né, filha? - perguntou.
- Fica perfeita, pai. - respondi. - Como todos os Natais daqui.
E realmente era.
Nosso Natal sempre foi simples, mas cheio de alma. Havia música, comida boa e amor. Havia também pequenas tradições: Clara vinha cantar comigo na igreja, mamãe fazia chocolate quente pra todo mundo, e o hotel se enchia de gente de lugares diferentes, cada um com uma história para contar.
Olhei para a estrada que cortava a montanha e pensei em como o mundo lá fora devia estar tão diferente, tão rápido, tão barulhento. Aqui, o tempo parecia andar devagar, respeitando o ritmo do coração.
Não sabia que, naquela mesma estrada, o destino estava prestes a mudar o rumo dos meus dias.
Mas naquela manhã, tudo ainda era paz.
---
Mais tarde, fui até a praça ajudar Clara com os preparativos. Ela estava empolgada como sempre.
- Isa! Você precisa ver como está ficando o coreto! - disse, puxando minha mão. - Vai ser o ponto principal da celebração!
O coreto estava adornado com fitas vermelhas, pinhas douradas e luzes brancas. Parecia saído de um sonho. A prefeita Marlene supervisionava tudo com seu bloquinho em mãos, resmungando sobre prazos, mas com um brilho no olhar que denunciava o quanto amava aquilo.
- Bom dia, Isadora - disse ela, anotando algo. - Sua mãe vai preparar o buffet da festa, certo?
- Sim, prefeita. Já está tudo encaminhado.
- Ótimo. - Ela sorriu. - E você, minha querida, vai cantar de novo este ano, não vai?
Senti o coração acelerar.
- Ainda não sei...
Clara revirou os olhos.
- Claro que vai! Ela só está fazendo charme.
A prefeita riu, satisfeita, e seguiu para outro grupo. Fiquei olhando Clara, que cruzou os braços e me encarou com aquele olhar de quem não aceita desculpas.
- Isa, você nasceu pra isso. O coral sem você não é o mesmo.
Suspirei, olhando as luzes piscarem.
- Eu só... não sei se tenho coragem.
Ela colocou a mão no meu ombro.
- Você tem mais do que coragem. Tem coração. E é isso que a cidade ama.
Clara sempre soube o que dizer.
Voltamos a trabalhar nos enfeites, e o dia passou rápido. O sol se pôs tingindo o céu de dourado, e a cidade inteira parecia respirar o mesmo ar de expectativa. Faltavam apenas duas semanas para o Natal.
Quando voltei ao hotel, os primeiros hóspedes começavam a chegar. Um casal de idosos, uma família com crianças... rostos conhecidos, histórias antigas.
Cumprimentei cada um com um sorriso, sentindo a alegria familiar daquela época.
Mas, antes de fechar a porta, avistei algo diferente.
Um carro escuro subindo a colina, lentamente, como se o motorista não soubesse exatamente pra onde estava indo.
O farol cortou o véu da neve, e por um instante, um arrepio me percorreu.
Não sei explicar, mas senti que havia algo diferente naquela chegada.
Talvez fosse apenas a sensação de que algo estava prestes a mudar.
Talvez fosse o próprio destino, soprando entre as luzes do Natal.
Naquela noite, enquanto fechava as janelas e o vento sussurrava lá fora, eu ainda não sabia que o hóspede que estava prestes a entrar no Hotel Monteiro traria mais do que bagagem.
Trazia silêncio, segredos...
E uma melodia que, sem saber, estava prestes a mudar a minha vida para sempre.
{...}