Virei de um lado pro outro na cama, inquieta. O relógio da mesinha marcava duas da manhã, e o hotel estava mergulhado num silêncio quase absoluto, interrompido apenas pelo rangido das madeiras antigas e o barulho distante do rio atrás do jardim.
Suspirei.
De alguma forma, aquele homem tinha me despertado. Não no sentido romântico - ainda - mas como se tivesse acendido algo que eu também havia deixado adormecer: o medo de perder o brilho das pequenas coisas.
Levantei-me.
Peguei o casaco pendurado na cadeira e, sem acender nenhuma luz, fui até o canto do quarto onde meu violão descansava.
Era o mesmo instrumento que ganhei de meu pai no último Natal antes dele adoecer.
"Cante sempre, Isa", ele dizia. "Mesmo que ninguém esteja ouvindo. Quem canta pro vento, acalma o próprio coração."
Sentei na beira da cama e dedilhei uma nota. O som soou tímido, como se também tivesse acordado assustado. Depois, outra nota. E outra. E, sem perceber, as palavras começaram a nascer dentro de mim.
Mas, naquela noite, eu não queria ficar presa às paredes do hotel.
Precisava de ar, de espaço, de estrelas.
Peguei o violão e saí descalça, andando pelos corredores escuros. O chão de madeira rangia levemente sob meus pés. Passei pelo saguão, onde o cheiro de canela e pinho ainda pairava, e segui pela porta dos fundos até o jardim escondido.
Era o meu refúgio secreto.
Poucos sabiam daquele lugar - um pequeno gramado atrás das estufas, cercado por flores que mamãe cultivava e um banco de ferro coberto por musgo.
Ali, o céu parecia mais perto. As estrelas cintilavam como se quisessem cair sobre nós.
Sentei-me no banco, ajeitei o violão no colo e respirei fundo.
Por um instante, fechei os olhos e deixei o vento gelado tocar meu rosto. Depois, comecei a cantar.
Uma melodia suave, nascida ali, no improviso. As palavras escapavam como se tivessem esperando aquele momento pra existirem:
> "Talvez o tempo ensine,
que a dor também tem voz,
e mesmo em meio ao silêncio,
há música em nós..."
A cada verso, sentia meu peito se abrir. Era como se eu colocasse pra fora toda a confusão que Leon havia me causado - a curiosidade, a empatia, e aquele tipo de encanto que a gente sente quando enxerga beleza até nas feridas do outro.
Fechei os olhos e deixei a melodia me levar.
Não percebi que alguém se aproximava.
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Leon não conseguia dormir também.
Desde que havia chegado àquela cidade, algo dentro dele ocilava entre paz e tormenta.
As ruas iluminadas, o cheiro de bolo e pinheiro, as risadas vindas da praça... tudo era tão diferente do caos das turnês, das entrevistas, das luzes que o cegavam mais do que o faziam brilhar.
Ele se trancara no quarto, tentando escrever.
Mas nada vinha.
As palavras, que antes surgiam naturalmente, agora pareciam fugir dele como se tivessem medo.
"É só um hiato", o empresário dissera.
Mas Leon sabia que não era.
Era o fim de algo - e ele não sabia do quê.
Levantou-se da cama, sem saber o que procurava, e foi até a janela. Foi então que ouviu.
Uma voz.
Baixa, doce, ecoando no meio da noite.
Ele seguiu o som, curioso, atravessando o corredor e descendo as escadas em silêncio. Abriu a porta dos fundos e viu o jardim iluminado apenas pela lua.
E lá estava ela.
Isadora.
Descalça, o cabelo solto caindo pelos ombros, a pele dourada pela luz pálida, e o violão abraçado contra o corpo como se fosse parte dela.
Cantava com os olhos fechados, e a voz... Deus, aquela voz.
Não era perfeita, não era ensaiada - era verdadeira.
Leon ficou parado, sem coragem de interromper.
Cada palavra parecia um espelho que refletia a própria alma dele.
> "Mesmo quando a noite é fria,
e o coração não quer cantar,
há um som que vem do nada,
pra lembrar quem fomos lá..."
O ar da madrugada parecia suspenso, preso entre as notas.
Ele deu um passo à frente, e o estalar de uma folha sob o pé fez Isadora se sobressaltar.
- Quem está aí? - perguntou, assustada, virando-se rápido.
Leon ergueu as mãos num gesto de rendição.
- Desculpa. Sou eu.
- Leon! - exclamou, tentando recuperar o fôlego. - Você quase me matou do coração!
Ele deu um meio sorriso. - A culpa é sua. Quem manda cantar feito um anjo no meio da madrugada?
- Eu... - riu sem jeito, ajeitando o violão. - Não conseguia dormir. Achei que vir aqui ajudaria.
Leon se aproximou devagar, como quem teme espantar uma borboleta.
- Essa música... é sua?
- Acabei de compor. - respondeu. - É meio confusa, mas acho que tudo em mim está meio confuso ultimamente.
- Confusa... e linda. - murmurou ele. - Você tem um dom, Isadora.
Ela riu baixinho. - Todos dizem isso aqui. Deve ser o ar do interior.
- Não. - Leon negou, sério. - É você. A forma como canta... é como se não houvesse distância entre o que sente e o que mostra.
Isadora desviou o olhar, corando.
- Você fala como quem entende disso.
- Eu... entendia. - ele respondeu, depois de uma pausa. - Já escrevi muitas músicas, mas agora... é como se tudo tivesse se apagado.
Ela o olhou, curiosa. - É por isso que você está aqui, não é? Fugindo do barulho pra tentar se ouvir de novo.
Leon soltou uma risada curta, sem humor.
- Você é perspicaz.
- Só atenta. - deu de ombros. - Cresci ouvindo as pessoas se confessarem pra mim sem perceber. Deve ser coisa de cidade pequena.
Ele se sentou ao lado dela no banco. O frio fazia o vapor da respiração deles se misturar. Por um tempo, ficaram em silêncio, ouvindo o barulho do rio.
- Quer saber um segredo? - ele perguntou, encarando o nada.
- Claro.
- Eu não vim pra cá de propósito. Só dirigi. Quando percebi, estava nesta cidade. Parecia... um chamado.
Isadora sorriu. - Então talvez o destino tenha GPS.
Leon riu. - Ou talvez eu esteja ficando maluco.
- Não, Leon. - ela disse suavemente. - Às vezes, o universo só leva a gente pra onde precisamos cantar outra vez.
As palavras dela ficaram pairando no ar.
Ele se virou pra encará-la, e, por um instante, os olhos dos dois se encontraram de um jeito que fazia o tempo parar.
Não havia nada de romântico ainda, mas havia algo... sincero.
Um reconhecimento. Como se ambos carregassem a mesma saudade dentro do peito.
- Posso te pedir uma coisa? - perguntou ele.
- Claro.
- Canta de novo.
Isadora hesitou, depois sorriu e começou.
Dessa vez, Leon acompanhou no violão, seguindo as notas com suavidade. A melodia tomou forma, e juntos criaram algo novo, algo que não estava nem no papel nem na memória - estava ali, nascendo entre eles.
> "E se o som voltar,
mesmo que devagar,
que seja pra lembrar,
o que é amar..."
A voz dela e o violão dele se misturavam perfeitamente.
Quando a última nota se apagou, Isadora sentiu o coração bater forte.
Leon a olhava como quem vê luz pela primeira vez em muito tempo.
- Acho que você acabou de me devolver algo que eu tinha perdido. - disse ele, baixinho.
- A música? - ela perguntou, sorrindo.
- Não. - ele respondeu. - A vontade de senti-la.
Ficaram em silêncio de novo, agora mais próximos. O vento soprava leve, fazendo as luzes distantes piscarem.
- Sabe o que eu acho? - disse Isadora, brincando com uma mecha de cabelo. - Que o Natal tem dessas coisas. Ele costura os pedaços da gente quando a gente menos espera.
Leon observou o sorriso dela e pensou que, talvez, fosse verdade.
Talvez a magia do Natal não estivesse nas luzes, nem nas músicas, nem nas festas. Estava nas pessoas que aparecem quando a gente mais precisa de um novo começo.
- Você fala como quem acredita de verdade nisso. - comentou ele.
- Eu acredito. - respondeu. - Não tem outro jeito de viver aqui sem acreditar em milagres.
Leon riu, se levantando.
- Então me ensina.
- Ensinar o quê?
- A acreditar de novo.
Isadora o observou enquanto ele se afastava, o violão ainda ecoando na mente dela.
O coração batia descompassado - não de paixão, mas de esperança.
Naquela noite, sob o céu estrelado e o perfume das flores, Isadora percebeu que algo estava mudando.
E, no fundo, sabia que aquele homem misterioso, com os olhos cheios de silêncio e notas esquecidas, estava prestes a transformar não só o Natal... mas a própria vida dela.
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No dia seguinte, quando desceu para o café, encontrou Leon sentado no mesmo canto do refeitório, uma caneca nas mãos e um caderno aberto à frente.
Ele estava escrevendo.
Pela primeira vez.
Quando notou sua presença, levantou o olhar e sorriu.
Um sorriso discreto, verdadeiro, cheio de gratidão.
E Isadora soube, sem precisar de palavras:
a música tinha voltado.
{...}