Suspirei, olhando de relance para o balcão. Mamãe conversava com o homem que havia acabado de chegar. Ele estava de cabeça baixa, com um boné escuro e um sobretudo grosso, como quem queria se esconder do mundo. Não consegui ver o rosto dele, só a maneira calma - quase cansada - como ele falava. Parecia... quebrado por dentro.
Clara puxou meu braço. - Terra chamando Isadora! - brincou, e me arrastou para fora antes que eu pudesse observar mais.
A manhã estava fria, mas a cidade parecia aquecida por dentro. O ar cheirava a pinho e pão de canela, e as ruas estreitas de Monte Belo já exibiam suas guirlandas simples, feitas à mão pelas senhoras da igreja. Era o tipo de lugar em que todo mundo se conhecia pelo nome, onde o carteiro parava para tomar café e a prefeita distribuía abraços como se fosse tia de todos.
No caminho, cumprimentamos os moradores. Dona Zuleica varria a calçada da padaria e levantou a mão:
- Isadora, diga à sua mãe que o bolo de frutas já está pronto pra festa da praça, viu?
- Pode deixar, dona Zuleica! - respondi sorrindo.
Mais adiante, o senhor Afonso ajeitava as luzes em frente à barbearia. - Essas lâmpadas piscam mais que o olho do Tonho pra Rosinha, murmurou, e Clara caiu na risada.
Eu amava aquilo. O som das conversas, o cheiro das casas, a sensação de que tudo estava exatamente onde deveria estar. Monte Belo podia não ter shoppings, avenidas largas nem vida noturna, mas tinha alma. E, especialmente no Natal, parecia que o mundo inteiro cabia ali.
- Você está me ouvindo, Isa? - Clara interrompeu meus devaneios. - A prefeita quer que a gente coordene o coral das crianças. E ela também quer ver se conseguimos alguém pra cantar a canção de abertura da festa.
- Eu? - perguntei, já sabendo a resposta.
- Claro que você! Quem mais? - Ela revirou os olhos. - A cidade inteira ama sua voz, Isa. E se você não cantar, quem vai? O Tonho desafina até pra falar "bom dia".
Revirei os olhos, mas sorri. Clara sempre acreditava mais em mim do que eu mesma.
Quando chegamos à praça, a prefeita Marlene já estava lá, enrolada num cachecol vermelho, supervisionando os enfeites. O coreto era o centro de tudo: as luzes piscavam, os sinos dourados pendiam das grades e o pinheiro enorme, ainda sem a estrela no topo, dominava a paisagem.
- Meninas! - ela nos chamou com aquele tom animado. - Precisamos que vocês ajudem com o coral e revisem a lista dos presentes da campanha solidária. A cidade toda vai comparecer à véspera de Natal. Quero que Monte Belo brilhe.
Clara assentiu entusiasmada, mas eu ainda pensava no hóspede misterioso. A imagem dele não saía da minha cabeça - o olhar cansado, o modo como segurava a mala como se fosse o único pedaço de casa que ainda lhe restava.
- Isa? - Helena tocou meu braço. - Você está bem?
- Estou, prefeita. Só pensando... - hesitei, tentando afastar o pensamento. - Nas músicas. Vou preparar algo especial.
Ela sorriu. - Sabia que podia contar com você.
Durante as horas seguintes, ajudamos a organizar os enfeites, penduramos fitas vermelhas e douradas, e Clara quase caiu da escada duas vezes tentando colocar as bolas no topo da árvore.
- Se você cair, eu não vou te carregar até o hospital, - avisei, segurando a escada.
- Ah, vai sim. Você me ama demais pra me deixar aqui estatelada.
- Talvez eu só tire uma foto primeiro.
Rimos juntas. Era isso que eu mais amava na Clara - a leveza dela, a capacidade de transformar qualquer preocupação em riso.
Quando o sol começou a descer por trás das montanhas, a praça já estava pronta. As luzes começaram a brilhar, e Monte Belo parecia um sonho saído de um cartão de Natal.
- Tá lindo, - murmurei, cruzando os braços.
- Falta só você cantar pra completar, - respondeu Clara.
Sorri, mas meu pensamento voltou, involuntariamente, ao hotel.
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De volta à recepção, o saguão estava tranquilo. Mamãe lia alguns papéis no balcão, e o cheiro do chá de ervas se misturava ao de lenha queimando na lareira.
- E o hóspede novo? - perguntei, tentando soar casual.
Ela levantou os olhos. - Está no quarto 6. Disse que vai ficar uns dias, talvez até o fim do mês. Quer descanso e anonimato.
- Anonimato?
- Foi o que ele disse. - Mamãe deu de ombros. - Um homem reservado, educado... mas com aquele olhar distante de quem carrega o mundo nas costas.
Olhei pela janela. Lá fora, a neblina começava a descer sobre as montanhas.
- Talvez só precise de um pouco de paz, murmurei.
Subi as escadas para levar algumas toalhas extras. Quando cheguei ao corredor, a porta do quarto 6 estava entreaberta. Toquei levemente.
- Senhor? Posso deixar as toalhas aqui?
A porta se abriu um pouco mais, revelando o homem. Era alto, com o rosto parcialmente coberto pelo capuz do casaco. Mas, agora, àquela distância, pude ver os olhos - verdes, profundos e cansados. Um silêncio estranho se formou entre nós.
- Pode deixar na cadeira, por favor, - disse ele, com voz baixa, rouca, mas gentil.
Fiz o que pediu, tentando não parecer curiosa demais.
- Se precisar de algo, é só avisar. A cozinha fecha às nove, mas mamãe sempre deixa algo pronto na geladeira.
Ele assentiu. - Obrigado. E... desculpe se causei algum incômodo. Só... precisava de um lugar longe de tudo.
- Monte Belo é ótimo pra isso, - respondi, sorrindo de leve. - Aqui o tempo passa devagar.
Ele ergueu os olhos pra mim, e naquele instante, algo me fez prender a respiração. Havia uma tristeza bonita nele, uma melodia silenciosa que eu não sabia decifrar.
- Então acho que vim pro lugar certo, - murmurou.
Sorri sem saber o que dizer, e saí antes que o silêncio nos engolisse.
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À noite, Clara apareceu no hotel com duas xícaras de chocolate quente.
- Você está diferente, Isa. Que foi?
- Nada.
- Nada, é? - Ela estreitou os olhos. - Tem a ver com o hóspede novo, não tem?
- Claro que não.
- Aham. E eu sou a fada do pinheiro.
Joguei uma almofada nela, e rimos.
Mas quando ela se foi, e o hotel silenciou, me peguei olhando pela janela, em direção ao quarto 6, onde a luz ainda estava acesa.
Não sabia o nome dele, nem o que o trazia até ali. Mas, de alguma forma, eu sabia que aquele homem - o hóspede sem destino - iria mudar o meu Natal.
{...}