DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa
img img DUAS VIDAS UM DESTINO. O Preço da Culpa img Capítulo 5 A ESTRADA ENTRE O QUEIMOR E O SILÊNCIO
5
Capítulo 6 DEPOIS DO SILÊNCIO img
Capítulo 7 O DIA DEPOIS img
Capítulo 8 O DIA QUE NADA FICOU NO LUGAR img
Capítulo 9 O CAOS QUE VICIA img
Capítulo 10 O DIA DEPOIS DO CAOS img
Capítulo 11 A SEMELHANÇA QUE FERE O img
Capítulo 12 OS RASTROS DO IRMÃO img
img
  /  1
img

Capítulo 5 A ESTRADA ENTRE O QUEIMOR E O SILÊNCIO

Quando fugir não impede que alguém te alcance

STEVEN SANTOURO

Ela saiu do salão rápido, como quem tenta escapar de algo que ainda não sabe nomear. Tinha a bolsa presa ao braço, um casaco claro sobre os ombros e um silêncio que me atravessou mais do que qualquer palavra. Eu continuei no jardim, imóvel, sentindo o vento frio bater no rosto. Mas ficar parado seria covardia, e isso eu nunca tolerei em mim.

Quando vi que ela parou próximo à entrada, olhando o celular enquanto esperava um carro de aplicativo, meu corpo se moveu antes da mente. Caminhei apressado até o estacionamento, falei com o motorista e peguei o carro antes que o dela chegasse. O coração batia rápido, irritante, fora de ritmo.

Parei o carro perto dela.

- Hérica, chamei, saindo do veículo. Por favor, deixa eu me desculpar.

Ela manteve a postura firme.

- Está tudo bem, Steven. Já esquece isso.

- Não, não está. Pelo menos me deixa te levar pra casa.

Ela hesitou.

- Eu moro em Orlando. É longe demais.

- Não me importo, respondi sem pensar. Sério. Vem comigo. Só me deixa consertar um pouco do estrago que eu fiz. Por favor.

Silêncio. O olhar dela pesou sobre mim, medindo a verdade nas minhas palavras.

- Tudo bem. Mas só a carona.

Ela entrou. E o silêncio também.

A estrada se abriu à frente, longa, escura, refletindo as luzes de cidades que dormiam. Miami ficou para trás. Orlando era quase quatro horas à frente.

O que eu estou fazendo? Levar uma mulher que mal conheço para outra cidade, depois de tê-la beijado sem permissão... Isso só vai tornar tudo mais difícil de controlar.

Mas eu não parei.

Para quebrar o silêncio, perguntei.

- Doutora, qual a sua especialidade exatamente?

Ela endireitou a postura no banco.

- Neurocirurgia funcional e microcirurgia vascular. Trabalho principalmente com tumores em áreas profundas do cérebro.

Pausa.

- Cirurgias que quase ninguém quer fazer.

- E por quê?

Ela olhou pela janela antes de responder.

- Porque bisturi no cérebro não toca carne. Toca memórias, linguagem, movimento, quem a pessoa é. Um corte um milímetro errado apaga alguém que ainda estava ali.

Passou a mão pela coxa, como quem organiza ideias no toque.

- Mas eu nunca pensei em números ou reputação. Penso em pessoas. Em famílias que já começaram a se despedir e me veem como última chance, mesmo pequena. Quando dá certo, o sorriso que elas me dão vale mais do que qualquer manchete.

Fiquei calado, fascinado.

Ela não falava como médica. Falava como alguém que entende a vida e a morte com as mãos. Isso era mais perigoso do que beleza ou desejo. Era verdade.

- E seu pai? Perguntou então, devolvendo o olhar. O tumor é de que tipo?

- Glioblastoma. Infiltrado no corpo caloso. Dois cirurgiões examinaram e nenhum aceitou. Risco de oitenta por cento de morte na mesa.

Ela apenas assentiu. Nem surpresa, nem medo. Apenas firmeza.

- Vou analisar com carinho. E serei honesta. Sempre.

O resto do caminho seguiu silencioso, mas não desconfortável. Placas anunciaram Orlando. Ela me guiou por ruas tranquilas até um bairro residencial.

Paramos diante de uma casa clara, dois andares. Não luxuosa, mas impecável. Luz baixa na varanda. Jardim bem cuidado.

- Essa é minha casa.

- Posso entrar? Só para conversarmos melhor sobre meu pai. Se não for tarde. E se não incomodar seu filho.

Ela desviou o olhar, quase sorrindo.

- Ele não está aqui. Fica com uma amiga durante a semana. Eu chego tarde demais, então ele fica com quem pode dar rotina pra ele. Nos falamos todos os dias. Nos vemos nos fins de semana.

Orgulho e tristeza na mesma frase.

- Quer entrar?

- Quero.

Entramos. A casa era silenciosa. Sofás claros, livros empilhados, poucas fotos. Cheiro de lavanda e café antigo.

- Quer algo? Água, suco, café, vinho?

- Café, por favor.

- Então me dá um minuto. Vou trocar de roupa.

Ela subiu as escadas.

Eu fiquei olhando os detalhes: um piano encostado à parede, brinquedos organizados numa caixa, um desenho infantil preso à geladeira.

Quando desceu, usava moletom cinza e cabelo solto. Beleza natural. Perigosa.

Na cozinha, colocou a cafeteira no fogo. Sentei no banco da bancada.

- Sobre o tumor do meu pai, comecei, ele está consciente. Sabe que pode morrer. E me pediu para convencer você.

Ela serviu o café em duas xícaras e me entregou uma. Sentou-se de frente.

- Nenhuma cirurgia cerebral é simples. Mas tumores assim... ninguém quer tocar. Não porque é impossível, mas porque ninguém quer ser culpado se não der certo. Médicos têm medo do julgamento e das manchetes.

- E você não?

Ela sorriu de lado.

- Eu temo perder pessoas, não reputação. Talvez seja por isso que muitos dos meus pacientes sobrevivam. Quando a família já aceitou a morte e eu entro, eu luto pelo último milímetro de vida. Quando dá certo, aquele abraço vale mais do que qualquer fama.

Não consegui tirar os olhos dela.

- Vou analisar o caso do seu pai com muito cuidado. E vou ser sincera. Sempre.

- Obrigado, respondi, levantando. Já vou indo.

Ela me acompanhou até a porta.

Antes que abrisse, falei.

- Me desculpa pelo beijo. Foi inadequado.

Ela me olhou por um segundo longo.

- Você não queria isso?

Fiquei sem resposta.

- Eu nunca faço algo pra me arrepender depois. Se você se arrependeu, eu te desculpo.

A honestidade dela me atingiu mais do que o primeiro beijo.

Dei um passo, depois outro. Ficamos perto demais.

- Eu... não me arrependi. Só achei que...

Ela ergueu o rosto.

E eu parei de achar.

Beijei.

Dessa vez, com menos culpa. Mais verdade.

E ela devolveu.

                         

COPYRIGHT(©) 2022